Tive
uma namorada que brigou comigo pelo simples fato de eu não brigar com ela.
Dizia que eu era por demais diplomático, que uma breve pitada de ira não fazia
mal nenhum. “Você não se irrita?”. Claro que eu me irritava! Claro que
havia uma série de coisas que me deixavam emputecido, mas, não sei se por
preguiça, se por condescendência, se por alguma nata habilidade para a
dissimulação, nunca consegui manifestar – externamente – sentimentos de ira ou
de aborrecimento. Evidentemente que eu achava muito inoportunos certos
comentários que ela fazia. Evidentemente que eu reprovava aquela mania de
ajustar a calcinha em qualquer lugar, e ainda por cima com aquele fatídico
barulho: tec!; Evidentemente que eu abominava aquela mania sádica de retirar
espinhas em mim com uma crueldade que eu sabia intencional; evidentemente que
eu achava o cúmulo que ela vasculhasse meu celular em busca de vestígios de uma
outra; evidentemente que eu não concebia que ela tivesse tanto assunto pra
trazer à tona exatamente numa sala escura no cinema, principalmente quando o
filme era legendado; evidentemente que eu queria morrer quando ela, por motivos
que eu nunca saberei, emburrava e entrava num mutismo que só acabava quando eu
já estava exausto de perguntar: “o que foi que eu fiz?”;
evidentemente que eu me aborrecia quando ela, naqueles momentos em que todo ser
humano normal vive o “momento”, vinha com comentários que simplesmente
inviabilizava o sucesso do “momento”. Tipo: “Você me ama realmente?”, “Você
está pensando em quem?”, “Você está sendo muito brusco”, “Você precisa ser um
pouco mais brusco”, “Você me ama?”. Perguntas pertinentes, mas
extremamente inoportunas. Evidentemente que eu me irritava. Mas é igualmente
evidente que alguma coisa aconteceu lá naquele “momento” de meus pais, que
determinou minha concepção, coisa essa que me fez menos iracundo que os humanos
normais. Irrito-me pouco e o pouco que me irrito é implícito, é por dentro, é
imperceptível. E mesmo quando, aqui dentro, começa a crescer o monstrinho da
ira, eu pego meu extintor e detono com ele. Essa coisa da ira me faz lembrar
uma história que uma colega, Amanda, me contou, que vos conto. Amanda e Nádia
são irmãs gêmeas. Quando garotas, a mãe tinha um pequeno armazém, em Porto Alegre. Ocorre
que, na mesma rua, moravam duas irmãs – cujos nomes ignoro (chamemo-las,
portanto, de Branca e Neve). Branca e Neve, sempre que faziam alguma compra, lá
vinham elas trocar, acusando que a mãe reprovara isso ou aquilo. De modo que
aquele troca-troca de produtos começou a irritar Amanda e Nádia. Numa dessas
trocas, Nádia, encolerizada, soltou os cachorros em cima de Branca e de Neve;
disse-lhes “as do fim”, como diria Luiz Gonzaga. E estendeu suas ofensas à mãe
das meninas que, a rigor, era a demandante principal das trocas perpétuas.
Branca, a mais velha, ao ver sua mãe traiçoeiramente envolvida na questão, sem
que a mesma pudesse defender-se das acusações, desafiou as irmãs Amanda e
Nádia, dizendo: “Suas magrelas, sai do balcão! Vem pra rua!” E, para estimular
suas rivais, alcançou uma pedra de razoável tamanho e arremessou-a em direção
ao balcão de madeira e vidro, atingindo, claro, o vidro. Fora a gota dágua.
Amanda e Nádia, impedidas de deixar o balcão, resolveram desafiar Branca e
Neve, propondo um duelo a ser travado atrás da igreja matriz. Branca e Neve,
ávidas por sangue e morte e dor e escoriações e hematomas e beliscões e puxões
de cabelo e ranger de dentes e fraturas, aceitaram, de pronto, a proposta.
Agendaram o evento-briga para as 10 da manhã do dia seguinte, ficando acordado,
previamente, que só duas voltariam para casa andando – as vivas, claro. Com
olhar desafiador e com os cabelos em desalinho e os pés na poeira e trajando
seus pijamas de florzinhas, lá se foram as duas garotas resmungando:
“Elas vai ver! Elas vai ver”. No dia seguinte, é Nádia quem diz para
Amanda: “Vamo?” “Pra onde?” pergunta Amanda. “Pra
briga, bestona!”. “Ah! Vamo.” Eram dez horas, e Branca e Neve já
estavam lá: mãos nas cinturas, olhar cruel e o infalível pijama. Resoluta,
Nádia não deu tempo nem mesmo aos xingamentos de praxe – o prelúdio
indispensável a qualquer batalha (vide Mel Gibson), foi logo para cima das
irmãs Branca e Neve, batendo e chutando e desferindo golpes sem qualquer
técnica: Pof! Paf! Pum! Pam!. As
irmãs, pegas de surpresa, reagiram bravamente, derrubando Nádia no chão
empoeirado. Pof! Paf! Pum! Pam!
Nádia, num momento de rara reflexão, percebera que Amanda estava ali, a uns 15 metros , estática,
olhos arregalados. E gritou: “Amanda, vem me ajudar”. Pof! Paf! Pum! Pam! A súplica tinha
duas razões básicas: uma, ela estava apanhando feio; duas, Amanda, que lhe
constasse, estava escalada para compor as fileiras. “Amanda, vem!” Pof! Paf! Pum! Pam!. “Amaaandaaaa!!!!” Pof! Paf! Pum! Pam! Ao que Amanda, saindo do torpor, respondeu: “Eu
tô sem raiva!”. Pof! Paf! Pum! Pam! Pronto, estava
explicado. Nádia, diante de resposta tão inesperada ao seu pedido de socorro,
não mediu esforços para, em meio à poeira que se levantara, safar-se. Saiu
correndo, seguida por Amanda, presumindo essa última que Branca e Neve não a
poupariam. Chegaram a casa, onde estavam a salvo das cruéis Branca e Neve.
Nádia estava irada, não com suas rivais, não com suas escoriações diversas, mas
com sua irmã, a apática Amanda. Amanda, com a consciência esfacelada por ver os
destroços de Nádia, numa tentativa vã de justificar-se, repetia, cabisbaixa: “Eu
tava sem raiva...”. Nádia, lambendo dolorosamente suas feridas,
engolira em seco a deslavada desculpa. Nada disse Nádia. Ela estava com muita,
muita raiva.
*Luiz Cláudio Sena é membro honorário da SuperNova, reside em Salvador-BA e escreve regularmente no blog cemfinslucrativos.blogspot.com
4 Comentários
Claudinho, talvez a Amanda tenha um pouco de Raquel (a da Bíblia e a da novela)...
ResponderExcluirhttp://youtu.be/X-JfKwZk3Ic
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEsse e outros posts, fazem de Luiz ClÁudio sena um forte candidato a cadeira nº 000000 da -ASL- ACADEMIA SUPERNOVA DE LETRAS.
ResponderExcluirMUITO BOM, FUTURO IMORTAL!!!
COMO ASSIM CADEIRA Nº 000000?? PODERIAM OU PODEM PERGUNTAR ALGUNS,- EXPLICO, É QUE NOSSA ASSOCIAÇÃO ACADÊMICA, ESTÁ PREPARADA PRA ABRIGAR MILHARES, E QUANDO CHEGARMOS AO PRIMEIRO MILHAO DE MEMBROS ACRESCENTAREMOS MAIS UNS DIGITOS, SIMPLES ASSIM.
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