Obra de Zakuro Aoyama |
Nunca a visão do inferno esteve
tão nítida quanto naquela tarde. Nunca jamais meus pecados estiveram em alerta
geral. Nunca. Digo porquê. Visito, vez por outra, um sebo existente na Estação
Central da Lapa. É talvez o mais sujo dos sebos que conheço, e não é tarefa
fácil achar algo digno de se comprar ali. Mas a menina que lá atende é vítima
de meus comentários idiotas, de modo que vou mais em função do bate-papo que da
possibilidade de achar alguma raridade. Na tarde daquele dia, em meio à enorme
movimentação na Lapa, um sujeito, de terno e empunhando a bíblia, pregava aos
transeuntes-pecadores. Não costumo resistir a tais manifestações públicas.
Parei ao lado de uma das lojas para ouvir a pregação. Pelo conteúdo, não tive
dúvidas que ele falava do apocalipse e, portanto, do fim do mundo. Estranhei,
no entanto, que, embora falasse do último livro da bíblica, a sua estivesse
aberta no meio – ali pelas proximidades do livro dos Salmos. Mas logo percebi
que seria impossível segurar o microfone numa mão e a bíblia noutra sem que a
mesma ficasse desequilibrada se aberta no último livro. Enfim. Em brados nunca
dantes ouvidos, ele fez uma descrição minudente acerca da infra-estrutura
inflamável do inferno, da eficiência de seus satânicos operários, do enorme
número de recursos de sofrimentos disponibilizados àqueles que para lá fossem
compulsoriamente indicados. Feita a descrição do inferno, o pregador deu início
aos esclarecimentos quantos aos pré-requisitos necessários àqueles que vão pro
inferno. Foi quando ele começou a falar do pecado. Enquanto ouvia, meditava
sobre meus. Sim, já pequei. E peco. Mas algo estava me dizendo que havia certa
desproporcionalidade entre o pecado e a resposta aos mesmos: o fogo do inferno.
Errei muito, é verdade. Mas ficar por toda a eternidade com um tridente em
brasa viva me sendo inserido (sic) no traseiro, convivendo com satã e seus
asseclas, comendo, literalmente, o pão que o diabo amassa, não dá pra aceitar.
Pensei em retrucar, mas vi que o palestrante não iria parar sua pregação para
ouvir perguntas. A essa altura, ele era puro suor. O homem gesticulava como se
estivesse – sei que é contraditório – endemoniado. Num dado momento, percebi
que ele percebeu que eu era o único cidadão que parara para ouvi-lo. Todos os demais
patrícios estavam, como formigas, indo ou vindo, com pressa. Percebendo que eu
estava atento e que era o único que o ouvia, o pregador agora falava olhando
para mim. O fato de ter um expectador, fê-lo dar maior ênfase às palavras e aos
gestos, numa teatralização de dar inveja a Autran Dourado. Falava olhando para
mim. Pelos olhos dele, vi que ele estava falando a um cúmplice, dialogando com
alguém que o estava prestigiando. Havia um quê de gratidão naquele olhar. Em
meio à multidão de transeuntes-pecadores, só um consciencioso-pecador estava
ali para ouvir a voz do senhor – aquela que clama no deserto. Ocorre que eu
tinha que ir embora, já tinha ouvido o suficiente sobre satã e seus talentos
infernais. Mas achei que seria deselegante sair, já que, agora, o pregador
falava somente para mim, tendo ignorado a todos – aqueles
mal-educados-transeuntes-pecadores – já que todos o ignoravam, muitas vezes até
esbarrando na pequena caixa de som instalada num dos pilares da Estação. O
certo é que tive que aguardar até final da pregação. No final, ele passou a
falar que só crendo em Jesus poderíamos nos safar das garras de satã. Falou
que, se cresse, estaria salvo e, automaticamente, seria incluso na lista dos
que habitariam os céus. Condenou aqueles que se apegam em estátuas, mitos,
falsos profetas, dinheiro, etc. “Porque só Jesus Salva!!!”. Foi quando me
lembrei de um comentário do Mário de Andrade: “Deus me perdoe, mas estou
pensando em Jesus”, no conto Peru de Natal.
*Luiz Cláudio é correspondente do Movimento SuperNova em Salvador - BA e escreve no cemfinsluvrativos.blogspot.com
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