A prosa rolou até meia noite nessa nostalgia. O táxi apareceu. Ajudei-a a pôr as panelas, alvinhas que fazia gosto, no carro: os caldeirões enormes, as panelas menores, os banquinhos. Entupimos o corcelzinho do elemento de buginganga da baiana e sumimos rumo ao torto que me aguardava naquela noite silenciosa e trágica, ou tragicamente silenciosa. Pus a boina na cabeça e me amassei no fundo do carro com a filha (protuberante filha da baiana, que ostentava na cabeça linda um turbante. “em vez de cabelos trançados, teremos turbantes de Tutancâmon!”). Num abri a boca. A única coisa que
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Av. Bart. de Gusmão, Vitória da Conquista - BA |
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Serra do Marçal, Vitória da Conquista - BA |
Dito e feito. No meio do mato, duas ruas antes da Fundição, no meio do mato, do mato, no meio, no meio do mato ela me largou:
_Aqui tá bom prá você, meu filho?
_Ah! Tá ótimo, dona baiana. Filha duma égua dos infernos, prima-carnal de Satanás. Vai pro diabo que te carregue mulambenta duma ova. “Aqui tá bom pra você, meu filho?” Desci no meio do mato, meia noite de uma sexta-feira festiva. Era o fim. Ou os ciganos me pegariam ou aqueles freqüentadores safados dos prostíbulos circunvizinhos. O caso não era distância física, mas a psíquica: dali de onde eu estava até minha casa, geograficamente, constituía-se em talvez 500 metros, porém, juntando a isso minha, acresceríamos mais mil e teríamos mil e quinhentos; mais dois mil metros de medo e subiria pra três mil e quinhentos metros; adicionando a fome, que no momento era somálica, mais uns três mil metros: Seis mil e quinhentos metros até minha casa. Pronto. Agora, sim, eu tinha uma equação pra resolver no escuro da mata espessa do meu idolatrado bairro Ipanema. Na fração de um segundo pensei, repensei, analisei, considerei, reconsiderei, reanalisei e decidi: “Volto, vou até o brega, entro no asfalto e pela outra rua que é mais iluminada um pouco saio correndo. Beleza. Voltei. Cheguei ao Brega. Quando fui passando pra esquina adjacente debati-me com quem? Ele mesmo: Ronaldo.
_Fabão!!!!!!!!
_Ronaldão!!!!! Êta alegria miserável que eu senti.
_Tá perdido, miserável?
_Rapaz, se eu bebesse de verdade, se eu fosse igual você, hoje era o dia de encher o rabo até sair cachaça pela goela.
_Vamos lá, então. Depois eu te levo em casa.
_Bicho, é o seguinte: eu tava lá no terminal, encontrei uma baiana e...
_Num tem felrrepes com a gente, não. Vamos lá agora.
_E como é que você vem depois, Zé Mané?
_Rapaz, quem manda nessa pôrra aqui sou eu! - E o bafo emanava lúgubre de sua cratera facial (que aquilo nem era mais boca, era caverna. Ô bafo de onça desgraçado!) Seguimos o funeral! Em menos de um minuto ele principiou a filosofia sem fim:
_Fabão, você que é um cara conhecedor das coisas, você que é um cabra erudito, você que... (gesticulava com as mãos)...me fala uma coisa: dá pra confiar naquele tal de Caetano?
_Que diabo foi?
_Rapaz, o sujeito sempre andou pisando em ovos, só fala manso, não se decide a porra nenhuma, de tudo quanto é lado aquele cara tá, canta seu “podres poderes” de tarde e à noite tá jantando com ACM, e agora, pra completar, pra mostrar sua canalhice de uma vez, votou em FHC. Isso mata um, cara. Isso num é coisa de gente. Neoliberalismo, meu! Pôrra. Aquilo, pra mim, foi uma cacetada sem tamanho, Fábio.
E o papo rolou entre Caetano e FHC até chegarmos lá em casa, na Santa Paz de Deus. Amém. (vagabundo só lembra de Deus quando o cu pinica.) Conversamos fiado mais uns dez minutos, dei-lhe um copo d’água e ele se foi, carregando consigo minha estimada boina. Pelo menos uma coisa: eu havia saído do mato e estava no confortável assento da minha casa 40, na minha Filipinas Avenida.
No outro dia, vou à faculdade, como de praxe, vender meus livros usados. Pela tarde nada, mas pela noite foi uma gozação sem fim. Ronaldo contou pra Alberto a situação na qual havia me encontrado na noite anterior e este, safado como só, encarregou-se de adornar os fatos com pitadas hediondas der inverdades. Primeiro disse aos camaradas de História que a polícia me havia encontrado caído na rua, próximo ao brega de Mariazinha, na Frei Benjamim, e que a boina foi encontrada na cabeça de uma das cotesãs da zona. Aí foi o diabo. Correu igual notícia ruim. SE eu dissesse que não, que era invenção da galera, fatalmente diriam que eu estava mentindo, e que era tudo por verdade. Por outro lado, em confirmando, eles caíam encima de pau:
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Av. Filipinas, Vitória da Conquista - BA |
_Rapaz, você é melhor do que alguma puta daquela lá? Que é que você tem que elas podem não ter e que seja melhor? Tava lá mesmo e daí!? - o caso é que esses sujeitinhos criticam certas atitudes que, convencionalmente, são incorretas, mas, por outro lado, esquecem-se de cuidar de suas vidas. Pregam um puritanismo safado, descarado e hipócrita e no fundo desenrolam em suas cabeças mórbidas uma série de maldades sem nome.
O caso é que a Universidade inteira, por via de Alberto, ouviu deste caso. Era tão intensa a camada de fofoca que muitas pessoas que não me conheciam ouviam falar do caso e quando me eram apresentadas, ao ouvir a expressão “Fabão”, gritavam absurdas: ele é o tal que...blá, blá, blá... Daí em diante, deste dia pra hoje fiquei sendo obrigatoriamente conhecido como o gigolô de Mariazinha. Mais ainda: seu cafetão. Até matérias publicaram em jornais sobre esta minha façanha inocorrida. Tudo isto por via de Veruska que invocou de aparecr-me no meio duma noite tardia, com o rabo cheio de cachaça e a cabeça sangrando uma margura desconexa. Lagartixa de beira de asfalto.
Mas voltando à festa da qual Ronaldo participava, tantas outras pessoas haviam lá que não posso contar. A casa era de um tal de Cachorrão, um safado, sem vergonha que cursava História na Faculdade de lá. Me contou, a pessoa que esteve nesta festividade, que lá pelas tantas da manhã foram indo embora pessoas menos resistentes à madrugada e ela foi ficando, ficando, conversando com um, com outro, tentando um namorinho ali, beliscando a bunda de outrem acolá, resolveu procurar pelo povo que havia se dissipado, mas que ela sabia não tinha ido embora. Foi procurando num canto da casa, foi no outro lado, foi no quintal, foi na frente da casa e nada. Até Danilo, um sujeito ordinário que está sempre à vista, pregando o seu papo de Jovem Socialista e convidando até velho pra entrar na UJS (União da Juventude Socialista), até Danilo havia sumido. Marcão, o beberrão, que o povo do Bairro da Alegria cansa de ver lambendo boca de cachorro vira-lata pelas madrugadas conquistenses, o apelidado de “Cabeça-de-nós-tudo”, e não é necessário esclarecer a alcunha, havia sumido também, o que levava a crer que estivessem juntos os dois vadios. Resolveu entrar e procurar um quarto pra dar uma descansada até que aparecesse a gente toda. Como é de costume deles, talvez tivessem saído todos em busca de mais cachaça, já que, por mais que haja, nunca é o bastante o que há. Que quando ele abre a porta de um dos quartos, ouve uns gemidos estranhos, libidinosos, sussurros e sons de lambidas. Entrou e encontrou a todos: Ana Lúcia, a suposta santa, Ronaldo, o Poeta das Prostitutas, Matheus, Bite, Danilo, Veruska, O Cabeça-de-nós-tudo, Vânia, Amanda, com quem eu tive alguns lances mais frementes, Humberto e André Luis, que era, entre todos, uma bicha declarada e se portava como tal na sociedade, todos nus, numa orgia infernal, numa devassidão esconjurada, vagabunda, na libertinagem que faria Marquês de Sade ri de prazer, numa suruba de fazer arrepiar os cabelos do capeta, o mais alto grau da promiscuidade da Grâ-Sociedade da Vagabundagem. Os gemidos eram tão conturbados de gozo e de terror que, se filmasse a Divina Comédia de Dante, aquele seria o som do V Canto, o Canto do Tártaro. Era a Caldeira de Pedro Botelho, o Averno, o Orco. O Inferno. Esta pessoa que me contou o ocorrido, por ter recato, compostura e decoro de sobras, fechou vagarosamente a porta e sumiu; que foi a pior coisa que ele já fez na vida dele foi ter ido embora, porque eu ficaria pra ver tudo tin-tin por tin-tin e ainda entraria em detalhes, como o chato de Montenegro. Saiu do Partido Comunista, outra besteira, e se filiou ao PT, onde sofreu decepção semelhante, talvez até mais sofrível.
Enfim, passamos pelo Conquista VI. Em frente ao posto da Polícia Federal, uma blitz. Alberto, coitado, triste com a presença enorme de um despautério amargo na cabeça, sem habilitação, sem documentos do carro, que não era seu, mas do irmão, um verdadeiro vagabundo, tomou a devida providência. Fez a curva bendita no meio da pista e cortamos caminho pela estrada de chão que fica ali do lado do Pé Inchado, mais emburacada que a face lunar e mais cheia de curvas que o corpo de Arlete (lembra, Alberto, daquele dia que tomávamos uma caninha ao som de Marisa Monte na porta da tua casa?). E o sonzão rolando. U2 comendo e a poeira ajudando. Porque eu sou ruim e o cabelo ajuda. E o que não mata urubu, engorda baiano. Saímos lá na frente, bem aculá. Naquelas bandas, indo em direção ao sul, logo, logo o tempo muda: o que é secura lá pros lados de Anagé, pra esse lado nem tanto; o verde raro do sertão vai-se intrometendo sutilmente, e belamente também. E o som rolando. Escaldante U2. Ninguém falava nada; a brisa lambia nossos rostos iluminados, o verde-claro das ramagens agora era de uma vivacidade emocionante, os pastos rasteiros pareciam campos de futebol, os gados que pastavam nas paragens pareciam paralisados tamanha a nossa velocidade. O orvalho da manhã perdurava com uma força sobrenatural. O som rolando. E entre uma facha e outra da fita, naqueles largos segundos, nós nos falávamos e Maurício gozava da cara de Alberto:
_É disco, é, Alberto? Quase meia hora de uma música pra outra! Há!há!há!
A vida pra nós, que moramos na Bahia, e baianos, tem aquele tom de azul contínuo, mesmo em vista da maior tragédia, mesmo em face do maior desencanto. Na noite passada eu havia tido um sonho maravilhoso, um sonho de fazer invídia a um bando de gente: sonhei que era Cangaceiro do bando de Virgulino Ferreira, o Lampião (“e correr da volante, no meio da noite, no meio da caatinga que quer me pegar”). Ô Maravilha, meu Deus. Cangaceiro!! Era tudo que eu sempre quis ser. Meu sonho, o irrealizável, a grande vontade era de ser Cangaceiro. Eu estava num descampado imenso, todo armado e com todo o adereço típico do cangaço: aquele chapéu estrelado, uma cinta cheia de bala, cabelo grande e duro, anel e voltas por toda a parte, toda a espécie de bijuteria, uma calça cinza, uns sapatos disformes e uma Papo-Amarelo dependurada no ombro. Lampião falava pouco e ia na frente; andava de olho no mato, que ficava ali perto do Pé de Galinha, pros lados do Anjico. Maria Bonita, muito bonita, porém maltratada pela caatinga, lançava olhares libidinosos em minha direção, no que eu me fazia de besta e desviava o olhar pra qualquer outro canto, pra qualquer direção, menos a dela. Num determinado ponto esquisito, paramos de andar, num lugar calmo e silencioso, como se não fizéssemos parte daquela era mais; era como se estivéssemos a quinhentos anos de tudo aquilo, como se numa dada hora, tivéssemos ultrapassado uma barreira e nos houvessem lançado pra fora da dimensão convencional; saímos dos anos 30 e do Nordeste; não que aquilo nos perturbasse ou gerasse em nós algum tipo de tribulação, ansiedade ou suplício; era a mais pura normalidade imperando em nossas mentes e medulas.
De repente, o bando se dispersou: foram umas dezenas de Cangaceiros para um lado, outra dezena pra outro e eu mais outro Cangaceiro misterioso fomos sozinho pra outra banda. Lampião entrou num pano cinza e sumiu por baixo de uma luz que descia como água dum lugar invisível, juntamente com Maria Bonita. Seguimos rente, eu e meu companheiro sem nome; certa hora, penetramos por baixo
duma cerca de arame farpado, por onde se estendia uma vereda, um caminho de roça, uma trilha que levava a um lugar ermo, já vislumbrado por nós de cá de onde estávamos. Ao mesmo tempo que era turvo o sonho, não nos amedrontava, era como se eu já me houvesse enquadrado à atmosfera que norteava a alma sem nexo daquelas desérticas paisagens que se assemelhavam a um país estranho fora do mundo, fora gdesta dimensão, até. Como eu trajava a indumentária avolumada pertinente a um cangaceiro, sentia-me verdadeiramente como tal, andava como tal e possuía um sotaque sinônimo. Andamos, eu e meu companheiro estranho, por uma longa avenida de mata até chegar num lugar onde, creio eu, era para onde devíamos ir de fato, era como as escadarias que há no Poço Escuro, o manancial de água de Conquista, só que maior em largura, em comprimento e declínio; a água escorria torrencialmente do alto da escada e era incessante na queda, quase uma cachoeira, e nós, abstratos, subíamos rumo a um lugar que só quem conhecia era o companheiro; outras pessoas andavam pelo lado adjacente ao nosso, porém, em sentido contrário, desciam a escada. Enfim, numa determinada hora, já fatigados da andada tremenda, sentamo-nos à beira da escada e observamos o aguaceiro e era uma imagem antes de natural, filosófica. Não me lembro sobre o que conversávamos, ou se falávamos algo sobre qualquer coisa, mas me parece que, a medir a loucura que envolvia o momento, discutíamos qualquer coisa de sobrenatural, extra-convencional ou ultra-convencional; notei que tínhamos uma nova órbita nas mentes, mantínhamos um diálogo mudo com a natureza e conosco mesmos, como se fôssemos distantes um do outro por uma força alheia ao nosso poder de imaginação, ao nosso poder de compreensão, porém, unidos por esta mesma força; e voltamos a andar com a mesma esfera dantes; e a água mantinha-se fortemente agressiva, hostil, ríspida e estávamos sós, agora, naquele lugar onde parecia ser eternamente cinco da tarde, nem um minuto a mais, nem um a menos. Cinco da tarde. Cinco da tarde. Meu amigo, talvez enfastiado com a andada, pôs-se a cantar umas cantigas do tempo da valentia:
De repente, o bando se dispersou: foram umas dezenas de Cangaceiros para um lado, outra dezena pra outro e eu mais outro Cangaceiro misterioso fomos sozinho pra outra banda. Lampião entrou num pano cinza e sumiu por baixo de uma luz que descia como água dum lugar invisível, juntamente com Maria Bonita. Seguimos rente, eu e meu companheiro sem nome; certa hora, penetramos por baixo
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Maurício |
Lá em casa na minha porta
Tem um pé de Jurema-Preta
Mais encima tem uma bigorna
Mais encima uma trombeta
Mais encima tem um menino
Tocando em sua paleta
Mais encima um soldado
Tocando em sua corneta
Mais encima tem uma cama
Onde a serpente se deita
Meti o pau nessa cama
Onde a serpente se deita
Meti o pau no soldado
Tocando em sua corneta
Meti o pau no menino
Tocando em sua paleta
Meti o machado no pau
Derribei a bigorna e a trombeta
No dia que eu amanheço
Conforme meu calundu
Minha mãe não peço bença
O meu pai eu chamo tu
Quebro cabeça de branco
Pra comer miolo cru
Não importo que me chame
Natureza de urubu
Noutra hora, cansado de cantar valentia, cantava canção de violeiro do nordeste, aquelas mais místicas e crentes possíveis. Quando ele abriu a boca foi que eu olhei direitinho: Edson. Fiquei doido! Amigo meu lá do Planalto Central, dois anos havia que eu o tinha visto, talvez mais. Talvez por ser um cabra que muito me tenha falado sobre o cangaço, por haver proferido mil formas de teoria teológica em minha mente, tenha entrado deste modo no meu sonho. Ainda que amigo, mantinha-se o caráter da distância e do silêncio, ou do diálogo mental. Continuava catando folhas no chão e tinha no alforje seboso livretes de cordel. Sua cantoria lembrava uma era medieval e era amarga, cantava dispersando a dor, olhava praguejando, debochava de baianas que circulavam raras do outro lado da fonte e cantava lânguido de voz, com uma ternura, porém, contrastante:
A senhora do remédio santa do cabelo louro
Pede esmola como pobre sendo dona do tesouro
O dono desta promessa teve muito esmorecido
Se apegou com esta santa, ele foi favorecido
Corre o vento da bandeira da sala pro corredor
A senhora do remédio visitando os morador
Mais logo, cantava seu amor:
Ô moreninha me pegue
E me bota no seio
Que eu não sou pinicapau
Que sobe no pau de joelho
Escorrega de costa e não cai
Surge do lado oposto uma negra de vestido rendado, levando na mão esquerda um balaio e na destra uma menininha de seus dois anos, pretinha como ela e cantava com uma afinação quase impraticável, uma doçura seu cantar. Não nos olhava, seguia rente e parecia estar indo a algum lugar distante:
pisa no dendê, machuca esse dandá
eu sou baiana nova, eu só bebo guaraná
por cima daquela serra passa boi, passa boiada
também passa moreninho dos cabelos cacheados
minha mãe me case logo, não me deixe madrocer
que eu não sou soca de cana que queima e torna nascer
quero bem o cravo roxo que nasceu no meu terreiro
quero bem a cor morena que foi meu amor primeiro
cheguei na sala da frente e fui pra sala do fundo
não me caso com viúvo que é sobejo de defunto
quem é aquele que lá vem cai aqui, cai acolá
parecendo com Fabinho fulô de maracujá.
A baiana sumiu e nós, calados, praguejávamos contra a caatinga braba que nos devorava a carne dos pés e nos suava até a goela. Passavam carroças longínquas, lá onde se assentavam tristes mandacarus; o sol fumegava o tempo e tornava desforme a paisagem, cada coisa crescia e diminuía no átimo de tempo e era algoz a nossa dor, e a nossa alma tinha a cor fúnebre da desolação.
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Dernival |
_Alberto, para o carro, aí. - implorei, quase gemendo, em meio ao som ensurdecedor. “ah, a donzela quer fazer xixi, gente”, e a gargalhada comeu. O tempo ali por aquelas bandas tava mais que maravilhoso. O vento suave trazia uma paz leve, quase mística ao momento, ancestral. Já havíamos descido a Ladeira do Marçal, estávamos um pouco adiante. Nada mais gratificante aos olhos de qualquer humano que a visão maravilhosa que se tem da Ladeira do Marçal: os montes, as encostas, os vales...tudo poético, tudo saudável, o ar, a atmosfera que impera diáfana, o infinito que nossos olhos deduzem, a solidão saborosa e o devaneio místico do qual nos enchemos quando tateados pela sua amplidão desbundante. Aproveitamos a parada e nos pusemos a conversar descarações sem valia; comentávamos um ponto e outro da paisagem rural daquelas bandas. Aí, já era o Dire Straits quem comandava o som: “Sultans of swing”, “Money for Nothing”, “Brothers in arms”. Dernival mijava num canto, eu no outro, Maurício no outro, enquanto Alexandre se infurcou lá no meio da mata pra cagar e Alberto pra outro canto, do outro lado da pista, pra uma cagada mais solitária, mais nostálgica e relax. Infelizmente não me era dada na hora a vontade de uma atuação análoga à deles; nada mais prazeroso que uma cagada no meio do mato, ao som dos passarinhos ou no silêncio que há na flora auriverde das paisagens áridas da caatinga quando bem presenteada da “umidade que fecunda a terra sêca, vital retalho do céu que manda pro solo, divino orvalho, gozo que nos eterniza”. Todo o ritual, porém, para a execução desta tarefa há de ser cumprido fielmente para que se tenha um verdadeiro regozijo ao realizá-lo. Primeiro, há que se levar a alma e não o corpo até o local da atuação; há que ir andando ou de bicicleta, sentir o orvalho matutino da mata pairando sobre as folhas auríferas no solo sáfaro do sertão; há que se buscar um lugar onde possa ser vista a cidade, sentida a substancial diferença que há entre uma coisa e outra, notar, ao longe, o silêncio voluptuoso que emana da cidade morta na distância branca e linda. Depois, nem um adereço domiciliar deve ser utilizado para uma maior comodidade anal; nestes casos, o incômodo é que é cômodo. Deve-se usufruir das folhas rasteiras que, possivelmente, estarão expostas ao chão; muito cuidado porém, com as folhas de cansanção que circulam “naquelas terras imensas de nosso Senhor”. Deixemos de lado meus devaneios. Ali, ficamos bem uns quinze minutos. Eu e Dé adorávamos a paisagem. Ele com aquele seu misticismo ilógico e surreal me pregando a existência divina na paisagem e comentando com aspereza filosófica sobre a solidão de Deus, sobre os aspectos que envolviam a criação, sobre a dualidade das coisas, o tem-não-tem e toda a amargura que se acomodava na sua alma plangente; e cantava baixinho uma melodia de Belchior: “...talvez eu morra cedo, alguma curva no caminho, alguma punhal de amor traído completará o meu destino...” e eu lhe dizia que com certeza seria de punhal a sua morte. Maurício tentava arrumar umas das caixas de som com Alexandre, que passou a mão por trás da bunda atrás de mato pra limpá-la e rastou um punhado de cansanção, que lhe ardeu o traseiro o dia inteiro, até a noite, quando comprou uma pomada na farmácia. Enquanto o vento suave daquelas plagas azuis varriam nossas nostalgias clássicas, limpando nossas almas das poluições dos ares do centro urbano, libertando nossos sorrisos. Beleza. Retornamos à estrada. Agora dentro do carro, passamos por Itambé, fizemos, sem dúvida, alguma gracinha com o tamanho minúsculo da cidadela, mas não paramos, seguimos rente, como o canoeiro da música de Caymmi. O sol tava baixinho no nascente, ainda, e falávamos sobre como seria lá em Itapetinga:
_O negócio é seguinte - dizia Alberto, o suposto chefe - lá, só vamos na casa do elemento eu e Fabinho, que somos os mais franzinos e vocês três ficam à distância, observando o movimento, que é pra não causar espanto ou qualquer suspeita de violência, valeu?
_Beleza! - atendemos sinfônicos.
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Fábio |
Itambé - BA |
1 Comentários
Muito bom de prosa essa tal de Fabio Sena...
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