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Rock’n’roll, cartas de anuência e motores furiosos

Ninguém foi ao enterro de nossa última quimera.
Só o DORITOS, esta pantera, foi nosso companheiro inseparável...


PRÓLOGO

 
Para quem não sabe, na última segunda-feira, ao meio dia em ponto, acabou o prazo de entrega dos projetos do FAC (Fundo de Apoio à Cultura).

É fato: a gente nunca faz nada na hora em que tem que fazer. Talvez isso seja algo brasileiro, talvez isso seja algo brasiliense, talvez isso seja algo pessoal, mas é sempre mais fácil dizer que isso é típico do Brasil, o que alivia um pouco da nossa culpa individual. Sendo assim, isso é algo muito brasileiro. E a gente nunca faz nada na hora que tem que fazer. Sempre deixamos tudo para a última hora.

Uma semana antes de terminar o prazo final para a entrega dos projetos do FAC, nos disseram: “caras, vocês tem que mandar o projeto de vocês”, e nós dissemos: “é, nos temos que mandar o nosso projeto”. O FAC é um programa da Secretaria de Cultura que fornece recursos para o fomento da cultura, para auxiliar gente como nós, que tem que tirar dinheiro do próprio bolso para produzir festivais e outros agitos, que tiram a vida um pouco do marasmo cotidiano. Em Brasília, tudo, quase tudo, passa pela burocracia, pelo público, pelo governo. Se você não sabe o que quer da vida, exceto ganhar dinheiro e ter um emprego garantido para o resto da vida, você passa em um concurso público de qualquer órgão, seja lá qual for. Se você é desenhista você vira professor de educação artística. Atleta vira professor de educação física. E produtor independente manda projetos para leis de incentivo à cultura (nossa salvação, fique claro).

Assim, nada mais justo do que enviar nossa proposta para tirar um bocadinho daquilo que nos pertence. Então preenchemos o formulário do projeto, tomamos o cuidado de não dos identificar nos envelope A e B, conseguimos os orçamentos, fizemos a justificativa, planilha, tudo, tudo, tudo. Essa foi a parte fácil. Foi então que soubemos que precisaríamos de umas tais cartas de anuência...

A carta de anuência é um termo em que os artistas que vão participar do projeto dão ciência de que estão ligados no que está rolando. Uma mera assinatura. Tinta. Sem artistas não há festival... Isso é fato. São o início, o fim e o meio. Uma mera assinatura. Quase nada. Agora imagine 36 assinaturas! O fato é que o nosso festival alternativo ocorre bimestralmente, em seis edições, com seis bandas cada. É uma espécie de superstição nossa. Mas quem disse que em São Sebastião tem 36 bandas de rock? Aqui a coisa é muito delicada... Temos muitas bandas, mas elas são muito instáveis, nosso movimento está na puberdade ainda. Então o jeito foi ir atrás de bandas alienígenas, ou seja, de outros satélites. Bem, não tão alienígenas. Parceiros de outros planetas.

 
DESENLACE

Como tudo na nossa vida é pela hora da morte, só tínhamos 24 horas para conseguir arregimentar todas as bandas que queríamos. Isso mesmo. 24 horas. Nos sentimos o próprio Jack Bauer.

Nosso dia começou às seis da manhã. Não sabíamos exatamente o que queríamos fazer, mas sabíamos que tínhamos que fazer. Primeiro precisaríamos de um carro. Sem ele, seria impossível fazer nosso tour pelo DF, pois foi isso o que acabamos fazendo. Percorremos os quatro ângulos desse quadrilátero goiano. Felizmente, nosso companheiro Gil William, punk, poeta, grunge, operário, companheiro de produção do evento e de Coliformes Fecais, havia recém-adquirido um Fiesta branco, ano 98. O carro está com ele há um mês, mas já protagonizou incríveis aventuras conosco. E nesse dia presenciaria mais uma delas.

Foi difícil falar com o Gil, porque ele trabalha de madrugada no Pão de Açúcar, do Gilberto Salomão, e tem que dormir de dia. A dona Sheila, sua mãe, não o acorda nem que Jesus Cristo mande chamar. Mas conseguimos ligar no celular dele, depois de 15 ligações, todas para acordar ele de novo. Ele reclamou pra caramba, como sempre, mas, quando se trata de agilizar movimentos de rock’n’roll na cidade, ele não consegue não tomar parte. Mesmo reclamando, dava para ver a felicidade ou ao menos uma certa compulsão nos seus olhos. Além do mais, o horário alternativo e o sono mal praticado o deixam meio avariado.

Conseguimos o carro. E os telefones. Porque o celular do Gil é uma verdadeira mina de ouro. E os tesouros dele são os inúmeros números de bandas que ele possui.

Agora uma das piores partes: ligar para as bandas. Primeiro: odeio falar ao telefone. Acho desconfortável. Segundo: a explicação: “Não... É que... A gente vai fazer um projeto super importante, só que a gente precisa que você assine um documento... Não, não dá pra falar com o resto da banda, a gente precisa pra hoje... É que, heheh, acaba amanhã o prazo... Hihi...”.

Providencialmente, a Anne apareceu lá em casa naquele dia. Meus olhos faiscaram. Ela foi a nossa secretária. Pegamos o telefone do meu pai, entregamos na mão dela, e ela cuidou do resto. Sua voz feminina e delicada (para não dizer sexy) trataria de abrandar os sentimentos dos roqueiros e das roqueiras. Haveria de amolecê-los. Fora seu discurso articulado e formal que daria um tom mais profissional para as negociações. Batata! Todos atenderam muito bem. Algumas não puderam, é claro, mas a maioria aceitou. O discurso era: “Onde você está? Nós vamos até você!”

O primeiro com quem falamos foi o Deverson, do Mistake Arch. Essa foi fácil, porque ele vai todo dia lá na minha rua assediar minha vizinha da frente, Tati.

Entramos em contato com o Petrônio, do Dias de Outubro, ex-Outubro Vermelho e ex-Made in Garage. Falamos também com a Cilene, da Bonecas de Trapo, com o André Noblat, do Trampa, com a Valéria, do The Insült, e outros, que ou não podiam ou estavam longe demais para nós. Mas já era um começo. No caminho ligaríamos para outras bandas. Mas no caminho teríamos uma baixa: Anne teria que ir para o Futura dar suas aulas de inglês e nos deixaria. Deixamos ela no trabalho e fomos para a Administração.

Lá, por sorte, encontramos o terceiro elemento do trio: “O Cabeção”. O celular dele era outra mina de ouro. Exploramos até os últimos recursos. Por sorte ele estava de folga. Não sei porque diabos ele ia trabalhar no dia da folga, mas tudo bem... Pegamos o carro e partimos rumo ao horizonte distante.

A caminho, ligamos para o tio Ari. Ari de Barros não é meu tio, ele é tio do Cabeção, mas é como se fosse nosso tio de rock’n’roll. É um dos mais importantes produtores independentes de rock da cidade, uma lenda viva. Viva e atuante. Sem ele, não teríamos conseguido metade do que conseguimos. Foi superimportante para nós. De cara, com a maior displicência de todas, nos indicou Terno Elétrico, Elffus, Death Slam, Canela Seca, Umma Ghumma, Duplo Destino e Delatores. “Está arranjado”, nos garantiu ele. Então rumamos para o Paranoá para falar com o Petrônio, do Dias de Outubro. Sucesso. De lá fomos para a Asa Norte, mas especificamente ao McDonalds, da 507, onde trampa a Cilene, das Bonecas. Pegamos sua assinatura sem maiores dificuldades e muitos desejos de boa sorte. Nesse meio tempo, ligamos para o Phú, dos Macakongs. Ele falou que não poderia nos atender, mas que poderíamos ligar para o Evandro, o vocalista, que é um vagabundo bem-sucedido e assinaria a anuência. Ótimo. Matamos dois coelhos em uma só viagem. Encontramos-nos com Evandro, no Giraffas, do Gilberto Salomão. Ele nos surpreendeu admirando um cartaz do Chiclete com Banana, e não pôde se conter em soltar uma piada. Cabeção se esquivou dizendo que no show do Chiclete estaria lotado de gatas. Ele foi obrigado a reconsiderar. Assinou as anuências do Macakongs e do Quebra-Queixo. Ele já mandou projetos para o FAC, estava em fase de prestação de contas, e nos deu um monte de dicas legais. Depois disso, fomos para a Ceilândia. Antes de ir ao tio Ari, passamos na residência dos Maltrapilhos. Confesso que achei que a residência deles seria uma pouco mais... Punk rock suburbano. Mas era uma casa muito “chique” e com dois carros na garagem. Mas também, o que se podia esperar? Eles tocam punk rock há quinze anos, batalham, lutam e merecem tudo o que tem, e talvez seja pouco. As letras deles falam do cotidiano da periferia, mas não quer dizer que eles tem que ser periféricos para o resto da vida. E daqui a quinze anos eu quero ser igual a eles!

Casa deles é um modo de dizer, porque quem mora lá é o Márcio, o vocal. Pegamos as cartas, e não pudemos deixar de apreciar seu quarto “de pensar”. Um verdadeiro Santuário do Punk Rock, com imagens de São Tommy, São Dee Dee, São Johnny e São Joey, espalhados por todos os cantos para adoração, além de uma sensacional discoteca cheia de hinos e cânticos punks, e pôsteres, muitos pôsteres. No quarto de dormir, todos os panfletos de todos os shows que eles tocaram. Inclusive um panfleto do primeiro RadicalRock, que é o embrião do nosso evento atual. Foi difícil abandonar um ambiente tão religioso, mas o dever nos chamava.

Fomos para a casa do tio Ari. Ele não estava, estava em outras correrias. Mas enviou-nos seu Arauto: Jean Delator. Se ele não foi um enviado do próprio Deus do Rock, ao menos o foi de um de seus sumo-sacertotes, Ari de Barros. Sem ele, não teríamos conseguido. Sem ele, estaríamos F*&¨%$#@. O cara conhecia cada vagabundo que tinha uma banda de rock naquele P Sul de meu deus. E nos acompanhou por grande parte da jornada. Ele também nos livrou do encargo de dialogar pelo telefone. Ligava para as bandas e fazia o primeiro contato. “Pô, não coloca um telefone com créditos infinitos na minha mão não, menino...”. Colocamos sim. Ele já discando para metade da roqueirada ceilandense. Fomos a casa do HMackoy. O rapaz estava dormindo no sofá da sala, em frente ao DVD, agarrado com sua Les Paul. Fomos a casa do Porto Príncipe. Ele tinha acabado de ver a gente saindo do bar na frente da casa dos Nocables. “Eu vi vocês lá na frente do bar fazendo barulho. Um gritava ‘Cerveja:’ e o outro respondia: 'Te amo até na hora... De vomitar’, ‘Uh! Meu fígado já...Virou patê’!”. Gil e Cabeção gritavam isso o tempo todo. É um refrão de uma música do Royal Street Flash, uma banda de transição formada por membros dos Raimundos e do Quebra-Queixo em um verão perdido, e que foi a trilha sonora de toda essa saga, tocado pelas caixas de som do Fiesta. Fomos a casa do Nouse, onde uma tentadora Coca-Cola de 2 litros e meio nos recepcionou. Lá ligamos para a moça do Estamira, que me pagou um grande sapo, e foi merecido. Ela estava certa e eu errado. Na verdade não foi bem um sapo, porque ela foi supereducada e prestativa. Mas foi bem sincera dizendo que aquilo não era hora de correr atrás de algo tão importante. Refleti por alguns segundos sobre a minha miserável condição e depois voltei a fazer telefonemas de última hora. Depois passamos na Administração da Ceilândia, onde tio Ari nos esperava com as cartas de anuências do Terno Elétrico, Duplo Destino e Elffus, e os respectivos releases em mãos. Perguntei-me se ele era um mago. Depois desapareceu na beirada do mundo. Após algumas idas e voltas, fomos parar no estúdio onde trabalhava o Maurício, do Satélite Sonoro. Foram mais dois coelhos, porque, conversando, descobri que ele também tocava no Squintz! Trocamos muitas ideias, os caras botaram muita fé na gente, e a gente botou muita fé neles. Gostei de saber que o Satélite Sonoro tocava pós-punk. Os caras resolveram nos apresentar para um cara chamado Dito. O que foi dito é que o Dito cujo era o cara. Ele era o dono do estúdio. Estávamos com pressa para ir a outros pontos, mas resolvemos esperar. Em cinco minutos ele chegou, trocamos ideias com ele, trocamos projetos com ele, trocamos contatos com ele e a promessa de ser apresentado para gente que pode ajudar. Pode dar em algo. Pode não dar em nada. Só o tempo dirá.

Depois fomos para o Conic atrás de algumas coisas que tínhamos marcado. Não conseguimos encontrar quase nenhuma. Achamos o Régis, do Murro no Olho, lá na loja de Tatoo do Poeta. Ele assinou para nós, mas... Disse que não tinha CPF. Coisas de Régis. Foi assim mesmo. Ele também não lembrava o próprio endereço (ele mora em São Sebas, como nós), então pôs o endereço do Gil William. Sentamos em uma das mesas que tem no barzinho que fica na praça central do Conic para tomar uma cerveja (no meu caso um refrigerante, eu não bebo), discutir o plano e fazer uns telefonemas. Nesse meio tempo, o doidão do Gil viu um bando de roqueiros sentados em outra mesa e resolveu arriscar (Gil é impulsivo). Falou com o pessoal da mesa. Ele ficou um tempão lá conversando. Saquei que tinha conseguido algo, alguém ali tinha banda. Também saquei que ele estava em apuros. Ele me fez um sinal e eu fui socorrê-lo. Ouvi uma loirinha que estava lá dizendo, em off, para alguém na mesa: “Não, moço, ele não tá é querendo colocar o número dos documentos, vai saber...”. É que nas cartas de anuência tem que ter o RG e CPF. Quem seria doido de colocar a assinatura e o número do RG e CPF para um bando de estranhos? Perguntei de qual banda o cara era. “Eu canto no WxCxM e no Death From Above”. Tentamos convencê-lo de nossas boas intenções, mas ele parecia muito nervoso, como quem não quer dar vacilo por confiar demais nem por desconfiar demais, não querendo nos tirar de tempo. Entendemos e não insistimos mais. Mais tarde ele foi até nossa mesa e nos deu um CD das duas bandas dele. Muito gente boa.

As máquinas prontas, o ronco do motor, a cidade inteira se movimentou, porque naquela noite haveria, nos subterrâneos do Conic, o show do Varukers, lendária banda punk inglesa. Todo mundo ia estar lá. Aproveitamos a oportunidade e marcamos com um monte de gente lá, o que nos economizaria muita viagem. Saímos do Conic quando estava anoitecendo. Iríamos pegar mais algumas cartas e voltaríamos para lá. Nosso jantar, almoço e café da manhã foi Doritos de pimenta adocicada (ou doce apimentado) com Coca-Cola.

Passamos no Sudoeste para pegar a anuência do André, do Trampa. Ele estava na Academia Fit 21, na 108, praticando Judô. Arfante e suado, André veio com seu kimono, sentou na cadeira e assinou. Não sei porque, mas ele me lembrou o Rei do Crime ou qualquer pessoa poderosa dos quadrinhos. Daí fomos ao Estúdio Wave, na 307, pegar as anuências dos rapazes do Ramasth.

Voltamos para o Paranoá e pegamos a anuência do Chicão, do Marmitex S/A. Depois, no Jardim Botânico Shopping, pegamos o “autógrafo” do Gabriel, do CCE (não a marca de TV, mas a banda Caboco do Cabelo Esquisito). E tome Doritos. E tome Ruffles. E tome Coca. Finalmente voltamos para o Conic. Quebramos a cara. O show custava vinte contos, vezes três vagabundos, 60 reais. Por essa não esperávamos, acostumados a shows gratuitos no Conic. Não é que estivesse caro, nós é que não tínhamos grana, e o Doritos está bem acima da inflação. Decidimos ir para o Moby, um show de música eletrônica ao ar livre em frente ao Museu da República. Lá pelas tantas o Gil me chama para ir ao show do Varukers com ele. Achei estranho mas fui. Lá no carro, no estacionamento do Teatro Nacional, ele me explicou que ia pegar o dinheiro da conta de luz que a mãe dele mandou pagar.

Entramos no show do Varukers. Lotado. Foi difícil pegar assinatura do Frango, do Galinha Preta. Frango Kaos é o tipo de cara que está sempre correndo. Ele faz a gente se sentir como tartarugas. Mas conseguimos. Ele foi super prestativo, na medida das suas possibilidades, já que estava organizando, equalizando e apresentando o evento. Em seguida pegamos a carta do Fellipe CDC (Cara-De-Cachorro), do Death Slam. Depois pegamos a assinatura do Juliano, em nome do Murro no Olho. Falamos também com o vocal do Possuídos Pelo Cão, e com o Thiago, do Innocent Kids. Quem conhece estes é o Gil. Encontramos o Thiago no camarim do Varukers. Na parede um retrato gigante de Dulcina de Moraes. O vocal do Varukers pegou minha caneta Nankin emprestada para escrever o repertório da noite ou coisas assim. Ele andava para cima e para baixo praguejando em inglês. Não saímos de lá enquanto ele não devolveu a caneta, pois era uma Nankin vermelha zerada. O show deles estava para começar, e só estávamos eu, Gil, o vocal do Varukers e o cara do camarim lá. Fomos praticamente expulsos. Mas para sair tínhamos que, necessariamente, passar pelo palco e pela multidão que se amontoava na frente, lembrando que o show era em um lugar tipo estacionamento subterrâneo, mas bem pequeno, como se fosse só uma vaga bem comprida. Atravessamos a multidão, ainda que com vergonha, e a roda punk furiosa que ia até lá ao fundo.

O show do Varukers terminou, passamos na Esplanada, pegamos o Cabeção, fomos direto para casa, não sem antes parar no estacionamento da 30ª DP de São Sebastião para o Gil e o Cabeção me darem umas aulas de direção... É, somos sem noção. Resultado: estou com febre alta e gripe até agora... Mas valeu tudo a pena, porque, assim como Goku juntou as sete esferas do dragão, nós juntamos as 36 cartas de anuência!

EPÍLOGO

 
O projeto foi inscrito no FAC na segunda-feira, às 11h20min em ponto, faltando 40 minutos para o fim do prazo de inscrição.


Originalmente publicado no blogue do Móveis Coloniais de Acaju, em 24 de abril de 2010. Disponível em http://www.moveiscoloniaisdeacaju.com.br/blog/1073. Para variar, com as devidas correções do co-editor Daniel, "baba-ovo" do seu Aurélio...

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