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Somos marginais

Somos marginais. Vivemos à margem da cultura cara que os artistas vendem, à margem da tecnologia que facilita a vida de muito, muito pouca gente, a margem dos vertiginosos avanços das telecomunicações e das maravilhas da fibra ótica, que gira o mundo e aproxima mais as pessoas que já vivem num mundinho pequeno. Um mundinho onde não há privações, onde não há necessidades, onde todos são bonitos, e saudáveis, e inteligentes, e onde todo tem empregados, mas que adquire proporções atômicas em face de outro mundo, onde os problemas são o cotidiano, onde tudo é difícil, onde os progressos da telecomunicação e da fibra ótica são só um sonho distante, iludido pela aquisição quase forçada e quase obrigatória de um aparelho que confere status e aos impotentes a sincera sensação de poder. Somos marginais onde a rica literatura russa é simplesmente desconhecida ou ignorada, onde a música boa é parcamente imitada dando origem a músicas mal trabalhadas e letras pobres e banais - ou por que não dizer repetitivas - onde a poesia instigante e inteligente é substituída por rimas criadas a partir de frases feitas, temas recorrentes e sentimentos que já foram experimentados por milhares de vezes e que continuam a ser expressos por tempos e mais tempos. Somos marginais onde o grande teatro é supostamente compensado por peças extremamente didáticas, usando um conteúdo que embora talvez seus espectadores não notem, é extremamente vazia de conteúdo, utilizando em suas comédias piadas baseadas no besteirol total, no uso recorrente de palavras de baixo calão, nos duplos sentidos, na banalização do que já é banal, na reprodução, da besteira cotidiana que passa de aluno para aluno, de vizinho para vizinho, de dona de casa para dona de casa entre outras "classes" que reproduzem tais dizeres e trocadilhos e que - como dizia Millor Femandes: "são a mais baixa forma de arte" - na verdade são subdivisões de uma mesma classe, além de dramas nada convincentes e tragédias que só prestam quando retratam a própria tragédia do dia- dia, mas nada disso impede que se criem coisas louváveis, e que, eventualmente, emirjam e tenham um lugar especial longe de suas origens. Somos marginais onde a política é uma fadiga a mais e um fato social que já se corrompeu por completo e que é demasiado distante e demasiado inatingível. Um fato social que, como às vezes se pensa antes de se virar gente, é de poder absoluto de quem está no topo da pirâmide, não cabendo a quem está na base, sustentando toda essa estrutura, nenhum tipo de influência. Somos marginais onde o saber é um fardo a se carregar por mais de doze anos, quando finalmente se estará livre para trabalhar como pedreiro, faxineiro, ou para coçar o saco, pois ninguém aqui é besta de estudar até os dezessete anos mesmo sem saber por que, e ainda continuar estudando por mais uns oito anos ou mais. Chega de saber!


Pois esse mundo marginal está também às margens das asas e dos lagos, mais precisamente no lado mais carente de uma ponte maravilhosa e linda que, para desfrutarmos de sua imponência e para termos o privilégio de que ela contraste tão ferozmente com a arquitetura sabia e poética de "nossa cidade" (o que vem a ser uma hipocrisia da qual todos temos muito orgulho) tenhamos de abdicar da nossa saúde doentia, de nossa segurança violenta e de nossa educação sem razão nenhuma, que é a única coisa que temos e é uma coisa a qual não temos acesso, mas que não é mais importante do que o amontoado de concreto que se instala sob três monstruosos arcos que, embora a razão se esforce, não encontra motivo aparente para sua existência senão a megalomania de um governante à antiga e que não facilita em nada uma travessia que, diariamente, com muito penar fazemos. Esse mundo marginal chama-se São Sebastião que, embora tenha muitas flechas cravadas em seu corpo e se martirize tanto em sua sobrevivência, não tem reconhecimento senão em função das suas não raras epidemias e que, às vezes, imaginamos embelezar a idéia que se faz dela com nomes como San Sebastian, São Seba, Tio Tião, mas que é mais reconhecida mesmo com títulos populares como Ratolândia, Sapolândia, Vila do Hantavirus, Vale do Hantavirose e outros títulos que usamos para tirar onda com nossa própria cidade, ainda que o que se veja na pomposa Brasília seja o que um dia já foi extraído de São Sebastião na forma de seus tijolos que hoje formam unidos os ministérios, o congresso, e outros marcos da arquitetura que os oleiros daqui ajudaram a construir e onde o seu acesso é tão restrito.

Por aqui as aspirações mais grandiosas terminam onde acabam as possibilidades de uso do corpo e onde acaba o indivíduo. Pois o corpo é a única coisa que pode ser usada pelas pretensas modelos, raquíticas, anoréxicas, e pseudoconsumistas, e pelos habilidosos jogadores de futebol de várzea, sendo que aquelas nunca desfilarão em Paris ou Milão e estes jamais chegarão ao Real Madrid, mas é só o que lhes resta fazer: explorar o corpo e esperar, esperar que algum dia por um acaso um olheiro aspirando à riqueza descubra numa dessas garotas o potencial comercial que elas acham que têm ou que algum clube de futebol descubra um belo chute de um fura-redes potencial e invista neles sem que eles saibam o que estão fazendo, ou o que estão fazendo deles, mas sabendo que talvez estejam garantindo uma carreira promissora nas mãos de pessoas sobre as quais nenhuma influência exercem mas que detêm em suas mãos o poder de decidir o nosso destino.

Somos marginais nessa cidade onde todos têm patrões, para que em outros lugares todos tenham empregados. É uma cidade que tem duas faces.

Durante a semana, uma cidade quase deserta, senão pelos alunos que retomam para casa depois do seu período de aulas, onde você anda por horas a fio pelas ruas ensolaradas e sem arvores, cruzando o asfalto quente sem se cruzar com viv'alma.

Mas durante os fins de semana, a cidade acorda congestionada de pessoas, a feira cheia, um fluxo constante de gente, as casas cheias, em cada rua um ou dois sons a toda altura tocando hits do Calypso ou do Latino ou forrós os mais sórdidos possíveis, bêbados cumprimentando-se nos bares com gargalhadas que nunca somem de suas bocas cheias de dentes amarelados e de seus olhos inchados. O calor da cidade toma-se abafado e as ruas tomam-se vivas. Esse fenômeno ocorre porque nessa cidade onde todos têm patrões, muitos dormem nas pomposas residências de seus suseranos para seu conforto e segurança e que não chega até seus vassalos. Durante sua única folga tudo o que querem é voltar para o desconforto de seus lares e o aconchego de suas famílias. É como dizem algumas teorias sobre o universo: expandem-se, segundas feiras em que mal se consegue chegar ao colégio pela manhã devido ao fluxo intermitente de carros e ônibus nessa ocasião lotados para os centros em tomo dos quais orbitam nossas cidades satélites e depois se retraem aos fins de semana e se juntam em um átomo original chamado a nossa velha e boa SÃO SEBASTIÃO.



By D. B.

XXII/X/MMV

XXIII / X / MMV

SECULO XXI da era chamada cristã



Devana Babu

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