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A "pirgunta"


Uma moça passa por uma rua no centro da cidade com um violão na mão. O violão está numa capa preta de couro. A moça passa por um local onde dois ou três tratores estão trabalhando, perto dos quais se encontram três ou quatro peões.

Um desses peões grita:

- Oi, moça!

A moça fecha a cara e apressa um pouco o passo. Um dos peões se dirige ao outro em voz suficientemente baixa para que a moça ouça:

- Ô muiézinha besta, hein! Toda, toda, nem dá satisfação, eu só queria saber as horas. Que povin asqueroso, hein, Vadim?

A moça se volta para os peões, meio sem graça, se desculpa um bocado, dá as horas pro operário. A mulher conversa um pouco com os pedreiros enquanto pensa consigo:

“Pobres apedeutas! Estão cegos para a luz da verdade. Não conseguem perceber as mazelas que afligem a alma humana, especialmente a de uma pobre criatura humana que se aventura a transitar com um instrumento musical relativamente caro rumo a algum local sossegado onde possa praticar sua arte em sossego, mas não pode porque na travessia para tal local se vê obrigada a manter-se vigilante e preocupada com os vermes insensíveis que a qualquer momento podem abordá-la. E o abordar em si não constitui o problema, pois estamos em um país teoricamente democrático e além do mais ela é uma pessoa sociável e amigável. Não somos apáticos nem nada e até nos prontificamos a atender com todo o prazer a doce criatura que nos requisita. Isso se fosse realmente uma doce criatura e estivesse de fato requisitando a arte. Isso se fosse uma única criatura pra cada percurso de 500 km. Mas em primeiro lugar: esses vis solicitadores não tem consciência de quantos outros vis solicitadores os inocentes portadores de instrumentos tem de se deparar nom percurso de 500 m, mas eles acham que são os únicos. Acham que é muito cômodo e conveniente interromper o caminho de um ser humano para atender a seus caprichos baixos e nefandos. Se fossem perguntar as horas, pedir uma informação, trocar idéias sobre a execução musical. Mas não. É sempre a mesma petição. Como se o portador do instrumento fosse também um instrumento que por ali passasse unicamente para atender a suas solicitações, para preencher seu vazio intelectual, para fazê-los esquecer de sua insatisfação sexual, para mascarar seu fracasso social e familiar. Ou ainda como se o portador de um instrumento não tivesse mais o que fazer da vida, como se não tivesse filhos para sustentar, uma mulher para dar atenção, pais para auxiliar, um irmão deficiente físico para levar ao hospital, um cunhado alcoólatra para buscar no bar, um cachorro raivoso para sacrificar, roupas cotidianas para lavar e como se ele considerasse outra opção a não ser a de chegar a um lugar que lhe de paz e soletrar tranquilamente os acordes que lhe comprazem e lhe dão paz. É bem verdade que na maior parte das vezes quem carrega um instrumento como o violão realmente é vagabundo e não tem nenhuma das preocupações acima, só que isso não é motivo para perturbar ninguém. Esse é o grande fantasma caolho e medonho que nos persegue, o poltergeist pirracento da cabeça arrancada, aquilo que pode se comparar ao apocalipse. A pergunta. A miserável e inevitável pergunta, que é motivo do martírio de centenas de gerações de violonistas antes de nós e provavelmente o será por milhares à frente. Conheço algumas pessoas que ficaram internadas e hoje jazem abandonadas no HPAP, só por causa dessa perguntinha miserável.”

Pois estava a moça conversando e pensando tanto nisso, e a raiva se misturava com o alívio e a consternação pelos peões não terem perguntado coisa nenhuma. Mas logo o poltergeist voltou a pairar-lhe sobre a cabeça.

- Moça... Posso te perguntar uma coisa?

Não. Ele não vai perguntar isso. Pelo amor de Deus. Ele vai sim. Não...

Mas ele perguntou.

Peão I – Toca um Bruno e Marrone!

Peão II – E esse violão aí é pra vender?



Devana Baboo

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