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Gertrudes



O playground estava agitado.

As crianças, felizes e saudáveis, brincavam, pulavam, se empurravam de cima do forte, soltavam catarro, chutavam as outras com o impulso das cadeiras de balanço, assassinavam insetos, comiam terra, debatiam sobre o super homem na gangorra, se embriagavam com pitchula e transavam na cadeira de balanço.

Enfim, todas essas coisas que as crianças normais e saudáveis fazem quando estam alegres.

Mas alguma coisa me incomodava profundamente naquele playground, algo de anormal, algo de dramático e catastrófico que destoava do ar leve e colorido que circundava o local. No entanto eu não via nada se não a alegre inocência das crianças. Foi aí que eu vi a gaiola.

Tipo, não era bem uma gaiola. Era uma saleta onde duas paredes de tijolinho faziam ângulo com duas paredes de barras de ferro. Ou seja, o lugar devia ter sido outrora um depósito de gás, mas agora não mais. Em meio a semi-escuridão das sombras projetadas na gaiola, havia uma profusão de cores esvanecidas e encardidas, pois, trancafiadas naquela cela sombria, se encontravam montanhas cadavéricas de brinquedos gastos, como um bando de indigentes amontoados numa vala comum. E em meio aos destroços, às rodas de borracha, às bolas deformadas, às engrenagens soltas, às raquetes elétricas sem pilha, aos carrinhos sem capô e às espadas sem defesa, um “defunto” em especial me chamou a atenção. Era uma outrora linda bonequinha de pano, exibindo os outrora lindos olhos azuis, ou melhor, apenas um deles, fazendo par com um outrora meigo sorriso, agora esmaecido.

A sua figura denunciava o horror e os maus tratos, e a sua figura transmitia uma alegria tão patética, que da tintura avermelhada dos seus lábios acabava se desprendendo um forte miasma melancólico, especialmente pela aparência escorrida-derretida deles, fruto da tolice acidental de algum solvente derramado em algum gracejo inconseqüente, quiçá sob o pretexto da experimentação.

Seu olho direito já não existia mais. Em seu lugar apenas se via a sua tenebrosa fossa orbital, e a sua pálpebra lhe caía pesarosamente sobre o globo esquerdo, numa espécie de estertor de cansaço.

Seu braço esquerdo pendia pela costura, centímetros abaixo do seu ombro, e o braço direito expunha a linha negra de um remendo grosseiro sobre o pano amarelado.

E a parte superior de sua cabeça, perto da região onde uns poucos pêlos sintéticos se emaranhavam, uma enorme cratera se configurava em meio à enorme área calva de sua cabecinha.

Eu observava comovido e absorto o protesto inanimado daquele arremedo de gente, e, sem perceber, ia entrando, de forma sutil mas irremediável na inerte desolação da bonequinha, e seu espírito melancólico se infiltrava profundamente em minha alma. Sim, pois a essa altura eu me sentia incapaz de negar que a bonequinha possuía um espírito, embora eu saiba claramente que ela não o tinha. O burburinho dos moleques cessou, o dia ficou cinzento como se as nuvens negras tivessem fechado o sol por de trás de mim, e eu podia ouvir intimamente um sussurro ininteligível que ecoava no meu crânio. A essas altura eu julgava que todos esses fatores externos e internos não passavam de movimentos psicológicos. Olho para perto da grade e e vejo, com certa comoção e certa surpresa, um pequenino globo ocular de gude, com um círculo azul no centro, brilhando como que marejado por lágrimas que brotavam da superfície. Claro que isso devia ser efeito da condensação das moléculas do ar, mas isso não me impediu de ficar assustado com a súbita aparição do olho faltoso da boneca. Então eu apanhei o olho do chão, e trouxe o globo para junto de meus olhos para poder fitar dentro dos olhos fujões, e senti uma estranha pulsação vinda da bola, algo meio orgânico, e então uma lágrima discreta, mas sentida, escorreu pela esfera de vidro e depois por minhas mãos. Meus olhos ficaram rasos d’água em um arroubo de sentimentalidade provocado por uma onda de emoção saída do olho de vidro e entrando nos meus, mas eu me senti envergonhado e enxuguei meus olhos prontamente. A umidade deve estar muito alta, pensei. Então mais uma vez eu fitei meus olhos no fundo dos olhos do olho e pude ouvir nitidamente uma vozinha infantil, um pouco afetada falando desconexamente entre soluços:

“Aquelas crianças desgraçadas... Aquele doce bebê... Doce praqueles adultos cagões... Aquele mostrinho em forma de anjo... Eu também era uma criança... Ela destruiu minha infância... Doutor menguele mirim... Doutora frankstein em miniatura... Crianças cruéis... Monstrengozinhos meigos...”

E quando dei por mim, despertando daquela confusão de sussurros chorosos que me atormentavam, percebi que estava agachado perto do portão como um doidinho qualquer, talvez chamando atenção dos guris... Quando despertei subitamente e me vi naquela situação tão ridícula, me levanto bruscamente e, no impulso, jogo o olho com violência contra a parede, partindo assim o glóbulo de gude em dezenas de pedacinhos... Dos milhares de cacos de vidro começam a brotar incontáveis gotículas de sangue... Ouço um berro. Seria a boneca? Não... Claro que não... Que besteira... Bonecas não gritam... Que besteira.. Umas crianças no playground, só isso... As outras já estão apavoradas e correndo... Baderna como a de crianças com medo de baratas voadoras... Pra elas tudo é diversão... Menos uma que está paralisada ao meu lado ... Não aquele berro esbaforido de uma neném que fez dodói No joelho, mas um choro contido, quase que adulto, lágrimas melancólicas e culpadas... Então ela ergue o vestido e tira um canivete de dentro da calcinha... Chega perto do portão, abre-o e, antes que eu possa impedir, num gesto abrupto, enfia o canivete da estrela no olho direito e arranca-o... Ela não grita, agora ela só chora com o olho esquerdo... Eu vejo a irmã Selma se aproximando... A irmã grita... Não, Celina! Não brinca com isso! Menina encapetada! Eu vou te dar umas palmadas... Celina pega o seu olho arrancado e entrega-o solenemente à boneca, que está de pé na minha frente (Fantochismo? Procuro em vão as cordinhas...) e quase sem fôlego diz:

Toma, Gertrudes... Me desculpe, amiguinha...agora estamos iguais... Vc quer voltar a ser minha amiguinha? Vamos brincar de novo... por favor...

Celina pega Gertrudes pelo braço e... Putaquepariu... A boneca começa a andar... Nada de cordas... As duas saem de mãos dadas... Como duas companheiras de decrepitude... Atravessam os portões da Promovida... Ganham a rua do Caic... Brincam de chutar água de uma possa uma na outra... alguns cachorrinhos vadios se juntam à elas na brincadeira, e então todas as criancinhas do playground, refeitas do susto, se juntam ao grupo, todas elas, brincando como crianças felizes e saudáveis... Felizes para sempre em seu mundinho onde o mal é divertido... Onde o defeito é maravilhoso... Onde o rancor só torna mais divertida a brincadeira depois das pazes... Onde os adultos não interferem com seu modo de vida medíocre e aviltante... Então eu pego a navalha de Celina no chão, arranco meu olho, beijo a irmã Selma e então nós nos juntamos à diversão... Mas começa a chover e as crianças desaparecem na tempestade... Eu fico ajoelhado aos pés de irmã Selma, que hoje é minha esposa (na época eu tinha 16 anos...). Nunca mais eu me encontrei com aquelas crianças... Mas outro dia eu fiquei profundamente feliz ao encontrar um senhor que não tinha uma perna brincando com uma lagartixinha perneta lá na pracinha Tião Areia...

Devana Babu

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