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"Comé que é, minino?"



- Professora?

- Sim, Sérgio?

- A senhora é crente?

- ...

- Hein, professora?

- Err... Sou, sou sim. Mas...

- Fervorosa?

- Sim. Sim, muito, por quê?

- Não, nada não. É que a senhora tem cara. Na verdade, todo crente no universo tem cara de crente. E a senhora não contradiz minha teoria.

- Ué, minino, comé que você chega assim dizendo se eu sou crente ou não...

- Ué, professora, eu só tava reparando, o que é que tem. E a senhora não vem me chamando de “ué minino” não que eu sei que a senhora acha que é alguma coisa e que eu sou só um moleque, o que é um pensamento típico de gente como a senhora. E eu só estava dizendo por que todo crente tem cara de crente e quer mostrar que é crente. Isso é estatístico.

- Como é que é, minino?

- Já disse que eu não sou “como é que é minino” não, viu professora. Até quando a senhora fala isso parece que está dizendo: “Que horrível, você não pode falar isso por que eu sou crente, vou pro céu e você vai pro inferno”, embora a senhora não esteja falando de forma explícita, mas esse seu sorrisinho de lado seu, como se você não tivesse de dar ouvidos a isso mas tivesse que se manter em seu pedestal, ah, esse sorrisinho não te deixa negar isso. E eu sei também que quando a senhora se encontrar com os “irmãos” a senhora vai dizer: “Glória a Deus! Irmão, Deus hoje me deu um testemunho maravilhoso que abasteceu minha alma de Espírito Santo. Foi lá no colégio onde eu dou aula. Pois veio um minino hoje, um... um minino normal, assim, né, e irmão, ele me disse umas coisas tenebrosas, disse que crente era isso, que crente era aquilo, e eu podia sentir, irmão, era o demônio que estava usando a boca daquele minino para me testar, para me deixar em espírito de dúvida, mas eu resisti, irmão, eu sobrevivi à provação, graças à minha fé imensa e incomensurável no EU-SOU-TODO-PPODEROSO-GALHARDÃO-MISERICORDIOSÍSSIMO-CORDEIRO-PAI-DE-NÓS-TODOS. Pois é, irmão, eu virei pr’esse minino e disse com toda a autoridade e unção de que o EU-SOU-TODO-PPODEROSO-GALHARDÃO-MISERICORDIOSÍSSIMO-CORDEIRO-PAI-DE-NÓS-TODOS me revestiu: ‘Jeovah é o MEU DEUS e eu tenho que mostrá-lo a todas as criaturas que o meu Deus é maior que todas essas inquisições demoníacas suas!’”. E eu sei também que depois você vai contar na frente de toda a igreja e vai ser ovacionada e aplaudida de pé, ficar toda cheia de moral achando que disse uma grande coisona. Ora, professora, pois então vá evangelizar os preás lá do Villa Espanha, uma toupeira, uma cianobactéria, afinal eles também são seres de Deus. Vocês crentes... Sempre uns materialistas, uns possessivos. “Meu Deus”, “minha igreja”, além, é claro, de pouco humildes e pouco economistas nas bajulações. Ora... “o Galardão”... devia ser o “galhadão”, isso sim...

***
A professora ficou atônita.

- Mas... Err... Eu... Ai...

E logo todas as suas frases feitas e discursos batidos e idéias formadas se misturam de forma desordenada e desconexa:

- É, mas a Bíblia... A minha fé... O diabo não pode... Deus não gosta...Eu tenho fé e...

E de repente, olhando com o assombro na face para algum ponto que até ela ignorasse, e apercebendo-se do que ela era, sentou-se na carteira, escondeu o rosto entre os braços cruzados e, aos soluços, começou a chorar.



Devana Babu

O Magnânimo, ao XII dia do IV mês do ano de MMVI.

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