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TRÊS CRUZES NO MORRO (gólgota) por Devana Babu



Todos os domingos de páscoa, subíamos o morro e fingíamos que éramos crucificados nas cruzes esquecidas pela via sacra.
numa releitura intelectual do episódio mítico, vivíamos, em nossa imaginação, cada minúcia desse ato performático: para ninguém.
Eu, na cruz do meio, fingia que era o messias, e facilmente persuadia os outros dois a serem os ladrões, como se lhes prodigalizasse um dom.
Lélis, na cruz esquerda era o ladrão cruel. próton, como sempre, o ladrão arrependido.
Eu recitava o corvo e alguns poemas lascivos de Baudelaire, e sonhava que algum dia uma garota nua, pintada de groselha, algum dia encenaria o cristo para mim, nessa mesma cruz.
Lélis gaguejava pragas e planos megalomaníacos de destruição do mundo.
Próton, calado, esquadrinhava o horizonte para desenhar tudo depois, enquanto se penitenciava pela pequena heresia.
Do alto das cruzes, no alto do morro, vislumbrávamos o vale de São Sebastião se estender a nossos pés, do São Francisco ao morro azul, guiado pelo fio daquela estrada que vara a cidade.
Éramos seres místicos, conjurando preces corruptas. Emanando nossa energia voluptuosa para a cidade adormecida, purificando-a de sua supersticiosidade.
Havia um urubu que sempre pousava na cruz do Lélis, mas logo se arrependiam, pois Lélis lhe agarrava pelos pés e dava uma mordida. A cruz do próton era cercada de dentes de leão e a minha sempre tinha uma flor.
Depois, calados, imaginávamos nossa própria crucificação, gradualmente, como se a vivenciássemos: a flechada, o prego, o sangue, a neurastenia, a dúvida, a cegueira, a inanição, a hemorragia.
Depois descíamos e bebíamos o sangue dos crucificados e comíamos o corpo: wafers de limão.
Era por isso que, nessa época, chamávamos o morro do gavião de morro da caveira: era nosso Gólgota.
Próton virava à esquerda, para o São Francisco. Lélis seguia reto, para a ponte. Eu virava à direita, para o bosque.

Esse era o nosso ritual da páscoa.

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