LIBERTAD
Por Isaac Mendes*
Como educar a sociedade tornando-a igualitária, sem
preconceitos e, sobretudo, democrática? Como são construídas as relações
raciais e como o entendimento do multiculturalismo pode contribuir para uma
educação igualitária e para a formação da identidade da nossa comunidade?
A sociedade brasileira caracteriza-se por uma pluralidade
étnica, sendo esta, produto de um processo histórico que inseriu num mesmo
cenário três grupos distintos: portugueses, índios e negros de origem africana.
Esse contato favoreceu o intercurso dessas culturas, levando à construção de um
país inegavelmente miscigenado, multifacetado, híbrido, ou seja, uma unicidade,
porém, marcada pelo antagonismo.
Estamos há mais de um século tentando resolver uma série de
problemas decorrentes das dinâmicas discriminatórias forjadas ao longo dos
quatro séculos de regime escravocrata, racista. Mas o racismo não está apenas
no passado, vem sendo recriado, realimentado ao longo de toda a história e hoje
a sociedade civil tem atuado intensamente contra qualquer forma de
discriminação racial.
Devido à formação de uma hierarquia de classes ao longo da
história, situaram-se os (as) negros (as) na marginalidade e exclusão social,
política e econômica. Diversas etnias foram expurgadas do seu direito de
cidadania. Entretanto, houve em 2001 uma conferência mundial contra o racismo,
a discriminação racial, a xenofobia e as formas correlatas de intolerância onde
o Brasil assinou um documento se responsabilizando pela marginalização
econômica, social e política dos descendentes africanos. Ademais essa
conferência marca o reconhecimento por parte da ONU, da escravização de seres
humanos negros e suas conseqüências como crime contra a humanidade.
Embora a nossa luta seja diária, no mês da Consciência
Negra, o Movimento Sociocultural Supernova realiza o LIBERTAD, evento de luta e
resistência que visa lembrar a nossa comunidade quem realmente foi e é o negro;
mostrar o quão o racismo está arraigado no imaginário social, estigmatizando a
pele negra como inferior, subordinada, subalterna, feia; explicitar que a
democracia racial no Brasil é uma farsa; possibilitar conhecer mais sobre a
cultura que nos formou e deu o tom da nossa pele. Resistimos para que não nos
envergonhemos das nossas origens; para que nos conscientizemos que o racismo é
um contrassenso; para que compreendamos a desigualdade que está intrinsecamente
relacionada aos quatro séculos de exploração.
Não é uma exaltação da raça (a “raça social”, conforme
explicitado por Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, pois raça não se trata de um
dado biológico apenas, mas de “construtos sociais, formas de identidade
baseadas numa idéia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir,
manter e reproduzir diferenças e privilégios”), mas, sobretudo, uma incursão na
história e identidade de um povo de expressão cultural tão forte, que apesar de
terem sido explorados, marcados a ferro, queimados vivos e submetidos a tantas
barbaridades, deixaram marcas culturais que se fazem presente na nossa
brasilidade até hoje.
O contato entre diferentes culturas ocasionou o
multiculturalismo, mas sendo sempre a cultura de origem européia a dominante,
já que o hibridismo e o multiculturalismo foram negados por muito tempo e só
recentemente começam a ser pensados e discutidos.
O multiculturalismo se opõe ao etnocentrismo que “É o ponto
de vista segundo o qual o próprio modo de vida de alguém é preferível a todos
os outros.” Segundo Lévi-Strauss, a diversidade das culturas raramente foi
vista como um fenômeno natural, mas como um escândalo. Recusar admitir a
diversidade cultural é um fenômeno profundamente enraizado no imaginário da
nossa sociedade.
Com que imagens sobre a África e sobre os negros brasileiros
a nossa geração está sendo formada? Certamente pela visão do outro, do branco
europeu, expondo a história de forma cristalizada, estereotipada, animalizada e
por conta disto parte da sociedade não vê o negro como ser humano digno, pois essas
imagens, em termos de significação, possibilitam uma interpretação negativa,
estigmatizando o negro sempre como “o escravizado”, “o subalterno”. “São como
flashes de um passado que não tem nada haver conosco”. Daí surge o
estranhamento, a negação, pois ser escravizado, subalterno é ser inferior,
então, perpetuam-se discursos e pilhérias de que o cabelo do negro é ruim, que
sua religião é ruim, que sua cor é feia.
Não há como, em uma sociedade multirracial e pluricultural
como é o Brasil, pensar a cidadania e democracia sem considerar a diversidade e
o tratamento desigual historicamente imposto aos diferentes grupos sociais e
étnico-raciais. As diferenças são construídas socialmente e subjacentes a ela,
se encontram as relações de poder. O processo de produção da diferença é um
processo social, não algo natural ou inevitável. Mas, se assim é, podemos
desafiá-lo, contestá-lo, desestabilizá-lo, tornando verdadeira a proposição de
Sousa Santos: “as pessoas têm direito à igualdade sempre que a diferença as
tornar inferiores, mas tem direito à diferença sempre que a igualdade ameaçar
suas identidades.”
Como linha mestra da maioria das coletividades negras, o
processo de educação ocorre o tempo todo e se aplica nos mais diversos espaços.
Sem uma ação efetiva da comunidade, dos movimentos sociais e culturais, da
escola, da sociedade em geral, que compreenda e faça compreender a sociedade
multicultural em que estamos inseridos, a população negra acabará assimilando o
discurso do opressor, negligenciando a sua tradição cultural em prol de uma
cultura de embranquecimento, imposta como ideal de realização pela ideologia
dominante.
O Libertad é mais uma forma de repensarmos os paradigmas, em
especial os eurocêntricos, com que fomos educados, que valoriza, reproduz e
impõe o padrão hegemônico da branquitude. Ninguém nasce racista, mas torna-se
racista devido ao processo histórico de negação da identidade ou de
“coisificação” da matriz que nos formou.
Somos a resistência, somos o grito por liberdade, somo o
espaço sociocultural que proporciona discussões a respeito das diferenças
presentes, explicitando uma contra ideologia, favorecendo o reconhecimento e a
valorização da contribuição africana, dando maior visibilidade e uma
interpretação verdadeiramente democrática aos seus conteúdos, tornando os
indivíduos mais críticos. Esse tipo de ação promoverá um conhecimento de si e
do outro em prol da reconstrução das relações raciais desgastadas pelas
diferenças ou divergências étnicas, reconstruindo assim a alteridade nas
relações sociais na nossa comunidade.
LIBERTAD!
Isaac Mendes, entre outras coisas, é estudante de Pedagogia na UnB. |
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