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d.b (diário de bordo) II, XXVI/V/MMXI - Narrativa

São cerca de sete e vinte e sete agora e já não é mais tão cedo quanto outrora (há cerca de uma hora). Vânia e tio Cláudio já acordaram e um cheiro inebriante, forte e matinal de café exala pelo apartamento. O café de Vânia é ótimo, ou pelo menos parece ser pelo cheiro. Ontem tomamos com leite, então não dá para fazer avaliação precisa, mas, como exímio apreciador e colecionador de cafés, posso afirmar com toda a certeza que está entre os bons.

Tio Cláudio acaba de sair do banho e procura seu cinto. Derrubou meu telefone no chão, que vibrou como se manifestasse desgosto. Na verdade ele não para de vibrar desde que cheguei a Salvador. Mas nunca é uma mensagem nem ligação. Geralmente ele faz isso mesmo, como pressentisse o sinal de alguma dessas duas coisas, mas nunca com essa intensidade (digamos, de cinco em cinco minutos). Algo (isto) me diz que alguma mensagem está viajando quilômetros e quilômetros de distância para mim. Ou não.

Acho que foi o celular que despertou tio Cláudio, que despertou Vânia, ou não. "Vem ver, Devana". A TV de LCD fica no quarto dele, e estava passando uma espécie de "Balanço Geral” de Salvador. Na tela, uma manifestação para que demolissem um casarão. Fizeram uma barricada com pedações de madeira, tábuas, pés de cama e tal, e a polícia dizendo: "Manifestem, mas não incomodem!". Lembrei da manifestação "educada” em São Sebastião. Mas não sei por que aqui a coisa tem um ar mais orgânico, com um certo glamour de naturalidade, ou sei lá. Vai ver que é porque eu não sou daqui. Ver isso logo no primeiro dia me deu impressão de que isso acontece quase todo dia.

Enquanto fazia meus rituais matinais nada sagrados, ouvia o som da TV fazendo as narrativas da manifestação e achava muito engraçado. O som era meio vago e distante, afinal vinha do quarto de tio Cláudio, que tinha despertado com o barulho celular, mas de qualquer forma ele ia acordar mesmo.

Não sei por que, sempre que estou na casa de alguém, eu acordo muito, muito cedo, com o nascer do sol. Não é por causa do sol nem nada. Não sei o que é. Uma magia qualquer. Tenho o hábito de dormir pelas tantas da madrugada e acordar, no mínimo, meio dia, mas na casa de alguém, não importa o quão tarde eu durma, antes das sete eu desperto, e quase sempre antes dos anfitriões. Acordei e fiquei olhando pela janela, corrida, de blindex, com um céu deslumbrante. Ou eu que sou besta mesmo, diria isso de qualquer céu, mas afinal o céu é sempre bonito, mas cada um tem um sabor especifico. É que nem café. Sempre se há de elogiar um café. A janela dá para os fundos do apartamento, onde tem um monte de prediozinhos, um pouco ao longe um descampado onde estacionam alguns caminhões. Mas olhando para baixo, as múltiplas camadas vão se sucedendo em níveis variados até o chão, que não vemos.

Volto e começo a desfazer a cama, isto é: um colchonete coberto por edredons no chão, sobre o tapete da sala. Minha cama preferida. o apartamento é pequeno e aconchegante, um típico apartamento de solteiro burguês. Ou quase solteiro. Ontem quando eu dormi era um pouco tarde, mas não para os meus "padrões": uma e meia. Acontece que Vânia e tio Cláudio foram se deitar cedo, e o teclado do notebook faz um barulho do diabo, e eu tinha que digitar com cuidado, e ainda por cima não estou acostumado com esse teclado. Fiquei feliz de ver que Ricardo e Anne estavam online no g-talk, o que era perfeito. Fiquei mais feliz ainda quando eles foram embora cedo, assim eu podia dormir logo. O fato é que estava assustadoramente cansado, e olha que a viagem nem foi tão cansativa nem nada (duas horas de voo), ou será que foi? Só sei que não sou tão fraco assim pra dormir. O fato é que ultimamente tenho tido mais sono do que o normal. Acho que meu dias (e noites) insones estão me cobrando tudo de uma vez, desde o inicio de minha existência. Estranhamente isso se acentuou em Salvador, mas enfim. Desde a hora em que estávamos no carro vindo para cá, já sentia seus nítidos sinais.

Eram umas nove e meia, dez horas, mais ou menos. No trajeto do aeroporto para cá, o choque: outro mundo, outra cidade. No começo, só coisas mais ou menos típicas, porém surrealizadas pela estranheza (ou estrangeirice), enfim, pela falta de familiaridade e mais ainda pela proporção. Aqui tudo é muito maior. A cidade. Os prédios. Os shoppings. Algo que provavelmente não seria notado senão por alguém que nunca viajou para outro lugar senão Vitória da Conquista e mora em São Sebastião.

Viemos pela chamada "pista paralela"! Adivinha por quê? Porque ela era paralela, ora. Mas paralela ao mar! Mas não víamos mar, afinal ela era apenas paralela. Havia algumas ruas entre nós e o mar. No entanto, em dado momento, nós fizemos uma curva. Tio Cláudio acentuou o suspense: quando virarmos essa curva você terá uma visão deslumbrante. E tive. A curva ia descortinando aos meus olhos o Farol da Barra e a praia lá embaixo. Surpreendente. Não conseguia parar de olhar par ao mar. O mar. La mer. La merde. estava de noite, era muito escuro. Essencialmente você não vê o mar, mas as ondas, e espumas vindo de longe, bem longe, e detendo-se na areia. Detendo-se nada! Avançando, impiedosamente. Entre nós e praia, um longo batente que ia daqui lá ao Farol. O Farol era outra monstruosidade. A lanterna da verdade é só uma luzinha de Natal perto dele. Paramos na calçada do outro lado da pista, movimentadíssima. Atravessamos calçada e beirando a calçada o batente, antiquíssimo, de algum tipo de cimento ou coisa assim, com uma pintura pastel, melindres e requintes circunvolutos e coisas assim. Lá embaixo, bem lá em aixo, uns três metros, a areia, subitamente oprimida pelo muro que terminava justamente no batente onde estávamos. acessava-se a praia por umas escadarias que haviam aqui e ali, paralelas ao muro. Andamos o muro todinho e voltamos. Eu olhando abismado praquele monstro que ia e voltava, como se tentasse pegar você e não conseguisse, voltasse e viesse de novo. Parece um cenário de teatro, quando você sabe que a rua que você está vendo acaba na parede do fundo do palco. Porque a noite, só reina a escuridão, e você sinceramente não sabe de onde as ondas vêm. É lindo e aterrador. Tio claudio e Vânia ficaram lá em cima e eu desci por uma das escadas, fui até a praia, e pisei na areia pela primeira vez, deixando as pegadas de meu coturno. é muito difícil andar na areia, afinal é areia. Fui até a beira da onda para contemplar o abismo, observando o movimento das ondas para saber até onde ela ia, para que não entrasse água nos meus pés. mas a onda me enganou. Parei num lugar que julguei seguro, mas ela vinha e vinha e vinha e, quando você pensava que acabou, ela continuava vindo, de forma que ela encharcou meu coturno. Dei alguns passos pra trás e fiquei lá olhando, e foi então que eu entendi porque os antigos achavam que o mundo acabava em um abismo. Sinceramente, agora eu acho que acaba. Depois voltei a eles e nós ao carro e continuamos o trajeto até o apartamento. Agora estávamos chegando à Piedade e pude ver outras coisas, como a Praça da Piedade, a Praça Castro Alves, o relógio que os franceses deram para os baianos, o Mosteiro de São Bento, e, em determinado trecho, algumas prostitutas bem barangas e bizarras, do tipo que você só vê naqueles filmes de Bahia bem trashs (ó paí, ó!).

Mas só de passagem. No carro, perguntavam: "Como foi o voo, Devana? Vânia disse que você estaria se desmanchando de choramingar". Obviamente ela não disse isso, era só pirraça de tio Cláudio.

O voo. O voo foi ótimo. Uma bela parte da viagem. Provavelmente só por ter sobrevoado o mundo já valeria a pena, de forma que se eu tivesse apenas pousado em Salvador e voltado estaria no lucro. Estar na cidade é um bônus! Na internet, tem passagens a preços misérrimos, 29,90, 19,90, até 1,99, segundo o Cabeção. Sugiro que quem nunca voou compre uma dessas passagens só pelo prazer e experiência de voar. Depois volte no próximo voo.

A sensação de voar em si é bem normal, ou não é como eu imaginei. É como se você estivesse se transportando de um lugar a outro... Ou sei lá. É como andar de ônibus, um ônibus que anda pelo céu. Digo isso pelo fato de que imaginava que houvesse algum tipo de tensão ou medo, tipo "Putz, estou no céu, que bizarro", afinal não é todo dia que a gente anda pelo céu e vê o mundo lá embaixo. No entanto era uma sensação muito segura. Mas o que era deslumbrante era o fato de você estar lá em cima sem nada te prendendo ao chão ou ao céu e à vista. Como o voo só saiu de noite, não dá para ver muita coisa. Além do mais o dia estava nublado. Então só víamos algo mesmo quando havia uma cidade embaixo e você via as luzes, mas - putz! - na hora da decolagem eu via Brasília se distanciando aos pouquinhos, o aeroporto surgindo aos poucos, virando pistas, as pistas virando bairros, os bairros virando superquadras de luz, depois o Eixo Monumental se descortinando e então toda acidade vai se tornando um grande mapa cujas linhas são luzes alaranjadas. As lâmpadas de mercúrio podem ser feinhas para quem anda pela cidade, mas para quem anda de avião... Que espetáculo! A certa distância, dá para ver claramente porque chamamos de Planalto: Brasília é uma faixa de luz bem mais alta do que o resto do solo. E a cidade é toda esticadinha, feito um tapete. Voando mais um pouco passamos por cima de São Sebastião, e eu fiquei demasiado feliz. Vi tudo com clareza: a pista da nove, a BR 080, as imediações do CAIC, o Bosque... Pena que estava de noite, senão eu teria visto os morros. Também passei mais tarde em Vitória da Conquista.

Do meu lado estava sentado um cara que parecia o Chico Buarque da pandega. Louro, olhos verdes, cabelos penteados de lado, levemente compridos, bigodinho de malandro, mas com um casaquinho jeans vagabundo de Reginaldo Rossi pseudo-roqueiro, daqueles que tem escrito "Hard Rock Café", e uma cara de pobre e de ordinário que deus me livre. Mas já tinha viajado de avião umas trocentas vezes, mais do que eu, ou era o que ele deu a entender. Tinha que fazer aquele comentário infeliz?: "O avião demorou assim porque deu uma pane no ultimo pouso e eles estavam fazendo manutenção". péssimo comentário para se fazer a um aeronauta de primeira viagem. Os ouvidos trágicos - e o das mulheres em geral - só ouvem a parte do “pane”, nunca a da manutenção. Mas foi graças e ele que pude ir à janela (uêba!). Logo que chegamos já foi puxando assunto, reclamando disso e daquilo como quem não quer nada, como quem fala para todos e para ninguém, como fazem pessoas em lugares assim que querem puxar assunto sem se expor ao ridículo, já se expondo.

E eu, interesseiro e articulista que sou, além de ter um dom inominável para gente besta (a começar pelo meu próprio eu), fui logo dando trela apra o individuo, e assim que vi a oportunidade lancei: "Pois é... Essa é a primeira vez que eu viajo, e eu queria TANTO (imagine aqui meus olhos se arregalando e eliminando qualquer sutileza e eufemismo) ir à janela...". "Mas não tem problema, meu jovem, vamos trocar de lugar, já vi essa paisagem mesmo!". E foi assim que ganhei a janela.

Quase não consegui a bendita porque não sabia que a prática era pedir para moça do check in para providenciar os lugares. Quando você compra as passagens, não tem assento marcado, e os assentos são definidos na hora do check in, de forma que se eu dissesse, "Moça, seja gentil, por favor, é a minha primeira vez", ela poderia facilmente resolver o me problema. Tio Cláudio bem havia alertado meu pai que havia alertado a mim, mas o efeito "telefone sem fio" mais ignorância foi igual a não sentar na janela. Ou quase. Cabeção e Chefe, ao meu lado, pouco poderiam ajudar, pois eram tão inexperientes quanto eu. Assento 23b. Voe wh5723.

- Você realmente acredita em coincidências?

- Poderia ser sinal de boa sorte ou de desastre!

Bem que eu tentei mudar as coisas, saindo correndo da pizzaria que fica no posto que fica no aeroporto que fica em Brasília, mas pouco adiantou.

A despedida foi no lugar onde os carros estacionavam mesmo, dentro do aeroporto. Cabeção tirou umas fotos com a Alfa. Dei um longo abraço nele e na Chefe.

Apanhamos Chefe no Corpo de Bombeiros (ela está morando lá perto agora). Quase não ia! "Já estou saindo", disse ao telefone, e ela disse "Não tem como me apanhar no Bombeiro?”. E foi o que fizemos. O combinado era que ela fosse lá em casa umas duas da tarde, já que a ideia era que Sauro fosse para lá também, para também me levar no aeroporto, mas ele não foi, pelos motivos dele. Antes do povo chegar eu e papai fomos dar um rolé pelos bazares da cidade para encontrar coisas interessantes. Encontramos um brechó muito chique ao lado da Papel e Companhia, em frente à rua do Pacheco e do pedonanista. Lá encontrei um lindo e esparradíssimo coturno de couro, chega brilhava, do meu número (é raro encontrar coturnos do meu número), pela bagatela de 25 reais, que pechinchando reduzi para vinte. Estava de frente para a vitrine, lascivo, pedólatra, quase sussurrando: “Pise em mim.... Quero pertencer a você!”. Com os cinco mandangos que sobraram comprei um Spike que vi no balcão. "E esse Spike"? "Cinco contos". "Olha, Júnior” - disse papai. “Você só vai usar esse se lá se tiver show de rock". "Esse aí só tá aí porque eu tomei da minha filha". Tomei um monte de coisa dela e vendi aqui no bazar, ela não tá ficando doida!".

Logo deduzi que o coturno era dela, até pelo tamanho, e fiquei feliz por ter uma história. Camila é o nome dele. Quem será? É uma roqueira e mora em São Sebastião. Portanto, ei de conhecê-la algum dia. Quando voltar da viagem. Até lá, chamarei meus coturnos e meu Spike, indistintamente, de câmeras. Se a conhecerem ou a virem por aí, não dê notícias minhas. Não ainda. Até o meu retorno.

d.b, Salvador, várias datas e horários, vários sons e silêncios.

Revisão: Daniel

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