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Black Sabbath

ou:O Morro dos Energúmenos 
ou, como diria o Jhol: Life in Demons

A imagem é uma página do quadrinho independente do DF "BHELIAL".
Na falta de um scanner e de vergonha na cara, fotografei a imagem.

Parecia uma cena clássica de filme de terror: jovens roqueiros com cabelos longos, coloridos ou estranhos, e skates embaixo do braço, em algum lugar escuro, afastado e deserto ao ar livre, rindo alto, conversando abobrinha, fazendo estupidezes quase sempre displicentes. Ao fundo, um céu noturno carregado de nuvens escuras recortados por relâmpagos fulminantes e avassaladores. 

De fato, comentamos isso: nos víamos do lado de fora de nós. 

- Cara, parece cena de filme de terror, maluco! Já pensou se acontece alguma coisa sinistra?

Sim, nos filmes de terror sempre tem alguém que visualiza a situação e debocha dela. E sempre tem alguém que se aproveita da situação para fazer alguma brincadeira que gera uma cena de suspense. E sempre acaba acontecendo alguma coisa séria e assustadora mas que ninguém acredita à primeira vista.

Mas isso são os filmes.

Quem poderia crer que esses elementos tão clássicos, de tão clássicos, aconteceriam na realidade?

Subimos os morros sem suspeitar dos sinistros fatos que aconteceriam. 

Eu, Jack Black, Negro e Mat subíamos à frente do resto da manada. Fazíamos planos sobre nossa futura banda. Atrás de nós, se arrastavam cerca de 15 meliantes fardados de preto e munidos de correntes, coturnos e spikes. 

Quando chegamos ao sopé do morro, vimos dois carros estacionados. Havia gente lá.

- Ou alguém está fazendo sexo ou alguém está rezando - disse.

Os crentes costumam subir o morro nas madrugadas para fazer suas preces.

Olhamos para o outro morro, do outro lado da estrada, e ouvimos uma cantoria, barulho de atabaques, uma fogueira e toda sorte de barulhos sinistros.

Os umbandistas costumam subir o morro nas madrugadas para fazer suas preces.

Assim, estávamos ilhados: ao leste, os crentes chorando, a oeste, umbandistas gritando, numa espécie de guerra espiritual bizarra.

- E agora?

- Vamos para o morro que há depois do morro - sugeri. 

- Vamo, ué.

- Bem, agora resta saber por qual lado iremos. JB: cê tem mais medo dos macumbeiros  ou dos crentes?

- Dos macumbeiros. Tipo, eu sou de umbanda, tá ligado, mas eu não mexo com essas paradas não. Isso é do mal.

- Você nem sabe.

- Eu sinto, véi.

- Eu não acredito nessas porras mesmo - disse o Negro.

- Nem eu, arrematou Mat.

- Bem, então vamos subir pelo morro dos crentes. Vamos esperar os outros.

- Sentamo-nos no morro sobre os skates e esperamos. Entre os roqueiros, haviam dois que diziam incorporar entidades, às vezes. Quem sou eu para julgar?

Uma delas era uma que chamávamos de "Carrie". Haha! Ou simplesmente de "A Possuída". Isso porque certa vez, em um showzinho que organizamos, ela caiu incorporada no chão, enquanto uma banda de amigos tocava. Para um fã de Ian Curtis, isso não chegou a causar espanto, mas todas as atençoes se voltaram para ela. Menos a do pessoal da banda que continuava tocando! Depois, soube que não se tratava de convulsão, mas de possessão. Ou não. Um death metal sinistro soava enquanto a garota praguejava e amaldiçoava no chão. Desde então, chamávamos ela apenas de "A Possuida". Ou "Carrie". 

Ela era uma garota alta e muito corpulenta, morena de um tom terra siena. Lembrava um pouco Big Mama Thorntown versão Metal, com cabelos alisados.

No alto do morro, demos de cara com uma legião de crentes que começaram a orar em direção a nós.

- Senhooooooooooooooorr! Abençoai a vida desses jovens que não te servem, tirai todo o espirito maligno do corpo deles, senhooor! 

- Esse negócio desses crentes... Isso vai dar merda - disse o Jack.

Nos desvencilhamos dos crentes e fomos descendo a trilha que levava ao terceiro morro, outrora batizado "O Morro das Duas Faces".

A escuridão predominava e a única coisa que distinguia a trilha era a silhueta negra das plantas do cerrado, tortas e tétricas. Esporádicos trovões iluminavam nosso caminho.  Seguiamos enfileirados como índios, alguns com as lanternas dos celulares acesas, o que mais intensificava o escuro em torno de nós do que illuminava. Ao longe, víamos a cidade se estender pelo vale como um tapete de luzes avermelhadas, em parte por causa das lâmpadas de mercúrio e em parte devido a poeira das ruas. À direita, lá em baixo, a estrada que conduzia a Unaí, tão tétrica quanto o resto. Havia um cemitério de vegetais, uma verdadeira plantação de cruzes brancas. Nesta noite, muitos carros iam e vinham, às vezes em comboios, devido às festas orgiásticas de pagodeiros que aconteciam nas chácaras adiante. Mas em geral, a estrada era deserta. 

À direita, os morros se afundavam mais ainda em sulcos complexos com formas femininas, até desembocar em uma planície onde haviam algumas rarefeitas casas, pastos, laguinhos e gados. Os gados mugiam demoniacamente, e era possivel ver alguns crânios brancos de boi reluzindo em meio às trevas.

Observava, absorto, esse cenário obscuro quando percebI que o ritmo da marcha havia diminuído. Um pouco à frente, um dos roqueiros estava sentado no mato que beirava a trilha. Supus que se tratasse de uma brincadeira, como muitos o supuseram também. 

O nome dele era Neo, como o personagem de Matrix. Jack Black, que estava na minha frente, começou a bulinar com ele, enquanto murmúrios de "Ele está brincando.", "Ele está brincando?" e "Ah! Tá brincando!" preenchiam o silêncio.

- Cê tá doido, doido? Cê tá bem?

Sentado, de pernas abertas, ele movia o tronco malemolentemente em torno do eixo, de um jeito muito, muito chapado. 

Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, uma pequena algazarra se formou em torno do garoto:

"Segura ele!" "Chama ele pelo nome verdadeiro dele!" "Não deixa ele correr!" "MEU DEUS! ELE ESTÀ INCORPORANDO!"

Eu sei. Eu deveria estar assustado. No mínimo intrigado. Com medo. Ou sentindo uma energia estranha, ou com maus pressentimentos, ou ao menos com uma sensação forte, como acontece em situações assim.

Mas ao invés disso, estava calmo e insensivel, com uma certa curiosidade jornalistica: eu era a testemunha ocular.

Sempre achei que quando e se acontece algo desse tipo comigo, eu morreria de medo e sentiria um pavor sobrenatural. Mas foi como se nada demais estivesse acontecendo. Os outros também não pareciam estar muito assustados com isso. Que dirá eu. Talvez  porque estivesse cético. Mas o fato é que este é o fato.

Jack Black era um sujeito singular. Ele não parece uma pessoa, mas um arquétipo. De todos os arquétipos clássicos de roqueiros que existiam entre nós, Jack Black parecia o mais clássico. A impressão que dava é de que ele saiu de um desses filmes dos anos oitenta e noventa, aquele tipo clássico de rocker que se vê em vários filmes e seriados. Como Buck e Skull, dos Power Rangers. Ou Ozzy Osbourne. Ou o próprio Jack Black. Ele era grande, gordão, cheio de piercings, cabelos até os ombros desfiados e mal cortados, castanhos com mechas roxas, unhas pintadas, tatuagens e o indefectível skate sob o braço.

Jack então falou: 

- Abram os braços dele em forma de cruz e segurem os três dedos mesmo que machuque. Carrie, fique longe dele!

Mas Carrie parecia não se importar, e os apelos de Jack e dos outros para que ela ficasse pareciam ter o efeito contrário e lhe dar um prazer inusitado em, justamente, ir pra perto do energúmeno. Ou ela era muito auto-confiante ou... ela de fato queria ser possuída pelo cão. Se é que era isso o que estava acontecendo.

- Cara, que porra foi essa? Tenho certeza que foram aqueles crentes pau-no-cu... 

- Não podemos passar por eles. Vai ser pior - disse Carrie. Eu senti um arrepio quando passei lá.

- É o seguinte - disse Jack. Temos que tirar ele daqui o mais rápido possível. Quanto mais longe estivermos daqui, melhor vai ser. Fomos. Cinco caras carregavam Neo nos ombros e os outros iam a frente ou atrás. Voltamos ascendendo outra vez ao cume do segundo morro, e recortado contra o céu azul escuro eu via as silhuetas negras deles se movendo como um teatro de sombras.

Eu era o último da fila, quando Atalanta, a garota loira, namorada do Pinga, me ultrapassou e disse: 

- Você não vai querer ser o último, vai?

Eu queria.

Foi ela fechar a boca e Carrie, que estava na minha frente, parou de chofre e deu uma gargalhada terrível e sonora.  

- Socorre! A Carrie incorporou também!

Logo vieram em socorro dela e a tomaram pelo braço. Ela estava parada e tensa como se estivesse travando uma batalha por dentro. Por sorte, não dava socos nem pontapés, ou se mexia. 

Em poucos minutos estávamos no cume do morro. Os crentes nos interpelaram:

- O que ele tem?

Ninguém falou nada. Ninguém queria dar ideia aos crentes. Até que alguém falou:

- Ele está possuído, moça - já descendo o morro.

- Isso é brincadeira?

Ao que pontuei:

- Não, moça, isso é absolutamente sério. Este rapaz está com o demônio no corpo. 


É incrível como as pessoas tem o dom de me levar a sério quando estou sendo sarcástico. Acho que sou convincente demais.

- Então é pra cá mesmo que vocês tem que trazer ele! É aqui que o mover de Deus está, jovens.

Os roqueiros relutaram por um instante mas, enfim, resolveram levar os energúmenos para os crentes. Nesse ínterim, Jack havia desaparecido. Correra. Não havia percebido a falta dele ainda. Estava mais concentrado nos crentes.

Os crentes então começaram a rezar sobre o Neo subjugado pela força e pelas fés. Eu fiquei ali assistindo de camarote. Queria ver no que daria. Queria ver se ele falava alguma coisa. Queria ver algo interessante.

- Vamos descer, disse o Jhon, para mim e a garota que viera de Ceilândia, Eva Braum.
Relutei um pouco mas desci com eles.

Lá embaixo, apreensivos, apenas esperávamos e conversávamos sobre o caso. Ouvíamos os barulhos, mas eles nada diziam. As pessoas e notícias foram chegando aos poucos. O primeiro foi o Yudi (1.000 reais!). 

- A Carrie está doidona lá, olhando pro nada, não falando coisa com coisa. Os crentes estão rezando nela. O Neo está cabuloso.

Depois vieram Mat e o Negro:

- Nós aceitamos a Jesus, cara. Vamos frequentar a igreja agora.

Os mesmos que subiram ateus no morro. Desceram convertidos.
Depois, desceu o próprio Neo, aparentemente restaurado. Sem diabo de demônio algum no corpo.

- Falou com o Paul Grey e com Kurt Cobain? - zoou o Jhon.

- Não dessa vez -  disse ele cabisbaixo e abatido. 

Por último, junto com os demais roqueiros, desceu a Carrie. Bufando e praguejando, puta da vida. Porque uma galera já tinha descido antes.

- Vamos sair daqui.

Descemos. Encontramos Jack Black à beira da estrada, transformado. Também havia incorporado um demônio. Olhei para Carrie e a vi tendo convulsões e revirando os olhos freneticamente para cima, deixando o branco do olho completamente exposto, em uma fisionomia aterradora. 

Depois, seus olhos voltaram à posição original, mas eu via neles uma cintilação que não era o de quem estava em seu estado normal. Havia mais alguém ali.

Ela olhou para Jack Black e Jack olhou para ela.

Os dois se aproximaram, fitaram-se cara a cara, abraçaram-se.

- Me possua - ela falou sussurrando.

Então os dois começaram a ir, e todos os outros também começaram a ir. De longe, mãos nos bolsos, caminhar lento, eu os via descendo a estrada ladeada de morros, cochichando e afagando-se, dois demônios passeando sob a luz do luar. 

O resto não importa.

O mesmo que se disse da imagem acima se diga desta.

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3 Comentários

  1. "No cume daquela serra,
    eu plantei uma roseira.
    O mato no cume cresce,
    a rosa no cume cheira."

    Nem evangélico, nem umbandista...
    Quer um esclarecimento bem abalizado? Procure o nosso xamã Edvair, tataraneto de Kunta Kinte. Ele lhe contará o que realmente aconteceu...
    Só para adiantar. Essas possessões, na verdade, são resultado de uma das mil traquinagens do Saci, que, aproveitando a distração da Cuca, juntou lascas do crucifixo do Morro da Cruz no caldeirão, o que perturbou a paz eterna daqueles escravos que viveram por estas terras...

    Daniel

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  2. Há um post no blog do Edvair (euumgrio.blogspot.com) onde ele narra a reforma da cruz que fica no "cume" acima citado. Ao reformar a cruz juntamente com Zé Carlos, que já foi guardião do Parque Ambiental do bosque e que, nas noites de lua cheia, incorpora uma entidade conhecida como "o véio do parque" Edvair juntou as lascas que as pancadas do martelo faziam cair da cruz e, juntando duas pedras que arrancou do famoso "muro dos escravos" que fica perto do aquario bar que os antigos afirmam que era uma antiga senzala fez sobre as pedras um fogo sob o tal caldeirão acima citado jogando dentro as lascas da cruz o que despertou a ira da alma dos escravos que passaram a assombrar aqueles morros desde então... Consta que kunta kinte veio parar por ali a pedido expresso de edvair, saudoso do ancestral...

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