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O B.U.: O Boletim das Minhas Primeiras Eleições


B.U.: Boletim de Urna. O nome que me atormentou por todo o domingo de eleições. B.U é um documento retirado da urna eletrônica ao final da votação, que imprime detalhadamente todos os dados da votação em determinada seção eleitoral. Ele é impresso às 5 da tarde, imediatamente após o término da votação. Pareceu-me tão emocionante... Saber um resultado assim parcial antes de qualquer mero mortal!  Não que servisse para nada. Mas aquela sensação de estar do lado de dentro do sistema... Era superior a qualquer uma. A sensação de estar participando de uma etapa da votação que não a de votar. De ter nas mãos um documento tão importante para a democracia. De ter acesso ao lado de trás de urna eletrônica, esse monstro sagrado que no subconsciente brasileiro representa o que há de mais intocável e misterioso: nosso direito democrático de votar em quem quiser sem ser pentelhado!

Aquela que não se deixa filmar nem fotografar...

Tudo isso me excitava avidamente e era sintetizado por aquele pedaço de papel: o B.U.!

Foi por isso que eu topei ser fiscal das eleições. Eu e meu amigo Correligionário fomos à reunião dos fiscais no dia anterior só para "filar bóia". Correligionário conhecia a supervisora. Quando ela passou, ele disse: "A gente ainda não recebeu o nosso crachá!". Ao que ela disse, correndo como fazem as pessoas que parecem estar ocupadas com alguma coisa: "Ah, não? Espere um minuto que já trago o seu!".

Na verdade, não tínhamos nada para receber. Não havíamos sido convidados como fiscais. Mas recebemos nossos crachás! E assim nos tornamos fiscais da coligação em cuja reunião estávamos.

Assim, no outro dia, não sem certo atraso, fomos para o colégio eleitoral.  No dia anterior, a linda advogada que coordenava todo o processo nos entregara um encadernado com todas as informações necessárias para um fiscal. 28 páginas. Eu as devorei com voracidade na noite anterior. Assim, no dia das eleições, eu sabia todos os direitos, deveres e parágrafos de cor. Com um crachá de papel no pescoço e as informações na cabeça, eu me sentia poderoso: eu era a perfeita incorporação do fiscal!

Logo que cheguei, já fui dizendo para o presidente da mesa: "Olá! Eu sou o fiscal da minha coligação. Quero ver a zerésima!".

Só depois de meia hora de bate boca eu concordei que eles só tirarassem a zerésima ao final. Mas eu tenho certeza que era para tirar antes! Eles disseram que se eu quisesse papel e caneta teria que procurar. E eu fui. Consegui papel e caneta em outra seção. Quando voltei, já havia outro fiscal na seção. Intimamente fiquei puto, mas apenas saí da sala sem nada dizer. Então resolvi vigiar as filas.

Não suportei. É incrível a quantidade de mensagens subliminares que a gente vê quando está procurando por elas! Pessoas cantando melodias suspeitas, camisas das mais diversas cores, frases inocentes como “eu vou mudar pra serra” ou “Eu aprovo D.I.U mas essa é uma escolha consciente!”. Até mesmo uma garrafinha escrito "2010", cujo dono cobria um dos números deixando à vista apenas o número de um dos candidatos, despertou minha suspeita...

Saí de lá antes que eu ficasse com TOC. Não sem especular filosoficamente sobre o limiar entre a boca de urna e a inocência.

Aí me lembrei da segunda melhor parte de ser fiscal: eu não precisava pegar fila para votar. Para que melhor? Eram minhas primeiras eleições! E lá fui eu todo serelepe. Fui andando de propósito pelo meio da fila no estreito corredor gritando: "Com licença! Com licença! Fiscal passando!".

Foi divertido. Impus a maior moral. Mas toda a moral acabou quando cheguei à porta e mostrei o crachá ao secretário: "Esse crachá não está assinado! Você precisa da assinatura do coordenador".

Putz! Que vergonha! Saí com a cabeça baixa e decidi votar mais tarde. Mas nada podia tirar a alegria de meu objetivo: o bendito B.U.!

Fui atrás de Correligionário, que estava com sua namorada para cima e para baixo. Perguntei quem era o coordenador que tinha que assinar para eu poder votar.

Correlígionário disse que não era coordenador e sim coordenadora: aquela moreninha baixinha que nos trouxe o almoço e o lanche! Eu tinha ficado tão emocionado com o almoço que nem prestei atenção na garota. Qual não fui minha surpresa ao ver que essa era nada mais nada menos do que uma das garotas pela qual eu era apaixonado na quinta série. Para a qual eu escrevi aquele maldito poema que e para a qual eu o entreguei com aquele maldito anel. Do qual todo mundo no colégio ficou sabendo. E que veio a tona tempos mais tarde, outra vez. Se na época eu soubesse que as outras garotas haviam gostado do poema...

Mas isso eram águas passadas. Eu até a havia visto no dia anterior, na reunião, mas não havia sentido sequer uma pontada de nostalgia. No entanto, quando a abordei e ela se virou, e eu vi de perto o seu rosto, me lembrei de como ela era bonita. Seus olhos verdes. Seu rosto de bronze. Na verdade ela parecia ainda mais bronzeada e ainda mais bonita. Impressão minha ou ela olhava fixamente? Tanto faz. Descobri que ela estava casada (?) com o rapaz neguinho-carequinha-de-alargador com jeito de carinha alternativo-jovem-adulto-skatista-com-tatuagem-de-carpa, que também era fiscal. Ele era gente boa. Então fui atrás do meu B.U.!

Ela assinou o crachá para mim e eu votei. Decidi, com Correligionário, que era melhor ir até outro colégio que tivesse menos fiscais. E fomos. Lá permanecemos até o entardecer. Por volta das cinco horas, fomos para a sala para, finalmente, tirar o maldito B.U.! Eu quase tremia de ansiosidade. Mas quando cheguei à sala, o secretário disse: "Ih, cara, a urna só emite 5 B.Us e já demos o último pro fiscal da outra coligação!".

"Sfortunato"! Nunca praguejei tanto em minha vida. Tenho a vaga lembrança de ver o presidente da mesa fazendo o sinal da cruz. Corri para as outras seções, mas o maldito fiscal já havia passado em todas! Tenho certeza que ainda o vi cruzando os portões, mas não consegui alcançá-lo! Sorte dele.

Então voltamos para casa, eu, Correligionário e sua namorada, que é a cara, mas a cara de um personagem do Mauricio de Souza, tanto na aparência quanto nas atitudes. Voltamos chutando pedrinhas enquanto o sol se punha projetando réstias de luz sobre o mar de santinhos dicromáticos que cobria cada centímetro de asfalto, com uma inegável decepção no rosto. Quando virávamos a esquina e chegávamos à parada de ônibus, um último raio de sol, se esgueirando entre as nuvens, atingiu em cheio um objeto surpreendente no banco da parada: UMA URNA ELETRÔNICA! Parece incrível, mas é a pura verdade! Uma urna eletrônica na parada de ônibus! Me lembro muito bem que no manual falava algo sobre urnas de contingente, que eram usadas quando alguma urna dava defeito. Bem... Uma urna deve ter dado defeito, e alguém, só não podemos imaginar como, deu um jeito de furtar a bendita! Amedrontado, se livrou da prova do crime na parada ou em outro lugar.

A rua estava deserta e, quando Correligionário e sua namorada-personagem-do-Maurício-de-Souza se deram conta, eu já estava abraçado com a dita cuja e colocando-a na minha mochila.

Sei que, para todo o sempre, quando olhar para essa urna no meu quarto de dormir, me lembrarei das minhas primeiras eleições!

Só espero que não sintam falta dela no segundo turno... Mas que importa! O TSE já foi indulgente com coisas muito piores!

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