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O mirante do morro da cruz

Quem acessar a cidade de São Sebastião pela entrada oeste e fixar um pouco a vista para o sul, se não sofrer qualquer atrofia da mesma, irá perceber um morro se destacando, e no pico deste, imperceptível pela distância, uma cruz. Se o observador se aventurar a escalar esse morro irá perceber que se trata de um mirante, já que uma vez encimado nele, pode-se obter um campo de visão horizontal de 360 (graus). Do cimo desse mirante, domina-se quase todo panorama de São Sebastião e suas adjacências. Ali, encontra-se, além da cruz, um bloco de concreto que se especula ser um marco geodésico do IBGE, o que leva a outras conjecturas, tais como ter sido o ponto marcado por Luis Cruls, quando da missão da demarcação do quadrilátero do DF. E ostentando um grau de mesma ou maior importância, está a cruz que se encontra fixada ao lado, coisa de 2 m de distância do bloco de concreto. Entre a cruz e o concreto, o resto de sua primeira fixação. Reza a lenda que a cruz foi fixada no mirante pelos escravos, e se levarmos em conta os rumores de que aqui já foi um fazenda que utilizava mão-de-obra escrava, isso pode ter um fundo de verdade, verdade essa atestada pelo Sr. Manoel Genserico, que afirma ainda que, estando a cruz prestes a cair, o Sr. Zica (in memoriam), que era o proprietário das terras na época, foi quem a fixou no lugar que ela se encontra até hoje. Esse Sr. Zica está para o Sr. Manoel como avô, já que ele foi pai do seu pai de criação. O Sr. Manoel tem uma carga histórica muito rica, pois conta hoje 69 anos de idade, foi criado aqui, e cujo pai, o senhor Belarmino Coutinho, faleceu vítima da febre amarela no inicio do ano de 1950 e foi enterrado nas proximidades do córrego Taboquinha, hoje Condomínio Belvedere Green, debaixo de um pé de jatobá, numa sepultura simples ornada por uma cruz tosca, que conheci muito bem, já que várias vezes descansei à sombra do jatobá, nas pausas que fazia enquanto campeava um burro fujão. Mas voltando ao mirante do morro da cruz, que vem a ser a cruz de todos nós, supõe-se que ela já foi ponto de parada e orações para os tropeiros da rota do sal, que cruzava a rota do planalto entre Luziânia e Formosa, pois não obstante os parcos documentos oficiais, esse já terá sido um dos trajetos da rota do sal que se estendia de Luziânia ao vale do Paranã. A abordagem desse tema vem em busca da causa do resgate da historia de São Sebastião, e, na madeira lascada da cruz fixada no mirante, pode se sentir a vibração dessa carga histórica, pois ela foi instalada ali, no mínimo, 130 anos; foi testemunha de um sistema rude, arcaico, cruel, mas nem por isso sem importância, dentro do contexto histórico. Muito pelo contrário, faz-se necessário o resgate da memória desse tempo, que gerou um grupo étnico mesclado, miscigenado, que começa a vagar sem identidade definida, e que, a partir desse redescobrimento, poderá se orientar dentro de um novo contexto, se auto-valorizando como indivíduos, o que trará benesses para o engrandecimento do coletivo. Num dos meus momentos no morro da cruz e aos pés dela, enquanto a fotografava e observava os seus horizontes e as chácaras localizadas no sopé de suas adjacências, eu pude sentir, através do assovio do vento que corta o alto do mirante, algo como as vozes dos meus irmãos negros que a plantaram ali no final do século XIX, suas tristezas, seus anseios e sonhos de liberdades, e isso firmou em mim certeza de que eu tenho uma parcela de responsabilidade, na missão de buscar trazer de volta a sua história ou pelo menos parte dela, porque, no madeiro dessa cruz, pode estar impressa, mesmo que de forma indelével, as marcas de algum antepassado meu e, enquanto eu a circundava, procurando fotografá-la por todos os ângulos, passou por meu pensamento a ideia de que estava à procura de mim. Ao circulá-la eu me lembrei que, no mês de fevereiro de 2003, eu escalei o mirante e, por estar passando um momento de dificuldade, fiz um pedido de uma graça no que fui atendido, cinco anos depois, eu voltei aos seus pés, desta vez junto com o Sr. Tião Areia e com três repórteres de televisão, quando pude recitar um verso de um poema de minha autoria, que foi levado ao ar, naquele ano, no dia do aniversário da cidade. Agora com o crescente arroubo de conscientização histórica aflorando em mim, percebo que a centenária cruz, depois de todo esse tempo exposta às intempéries do sol, da chuva, do frio e do vento, está prestes a desabar sua haste vertical, praticamente toda lascada, e o braço horizontal dá impressão de estar prestes a cair, e, se isso vier a acontecer, eu conservo alguma dúvida se haverá algum interesse em reerguê-la. Por isso vou concluir esse texto fazendo um apelo com o toque de convocação para uma causa santa: vamos salvar nossa cruz, preservar o mirante e a nossa história!


Edvair Ribeiro dos Santos. 04/04/2010.

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