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Trapizongas, Pergaminhos Modernos e Livros Analógicos

por devana babu*



são quarenta e um minutos. estou assistindo ao observatório da imprensa. acabei de ligar a tevê, na verdade. acabo de chegar da casa do júlio, onde eu, o dono da casa, meu pai e isaac discutíamos o destino. peguei o bonde andando. o programa havia começado há pouco, mas um tema predominava. em freqüências de 60 MHz, as informações jorravam pelo tubo televisivo, e uma enxurrada de hipocrisia e intolerância inundavam o ambiente.

explico-me: estavam noticiando o “lançamento” do livro digital. o livro digital, ou melhor, leitor digital (calma: não é a pessoa que lê que é digital; é um aparelho que lê arquivos digitais) já existe há algum tempo, mas só agora chegou ao brasil. em poucos segundos de transmissão, já deu pra ver qual era a linha da discussão: intolerância total contra a novidade. claro, em alguns minutos, pude ver que a intolerência partia apenas do apresentador, que chamava esta e outras novidades de "trapizongas", e que os demais participantes do debate, salvas as resalvas, tinham uma mentalidade bastante aberta à novidade. mas não quero que esse texto se torne um ataque pessoal a este homem da opinião, que, sejamos justos, faz um programa muito bom, e que traz sempre temas pertinentes, com discussões muito bem feitas, e informações maravilhosas, especialmente para quem se liga em jornalismo, informação e tal. este ataque (é um ataque!) se direciona a uma mentalidade geral que se instaura na nossa sociedade conservadora. o que não me impede, logicamente, de usá-lo como jesus cristo, e crucificá-lo durante todo o meu texto, a título de exemplo. isso porque suas frases caquéticas ainda ecoam pela minha jovem cabecinha, e muitas coisas estão engasgadas aqui. tenho que falar delas. elas estão explodindo na minha cabeça. notem, apressadinhos: esse é um confronto de ideias, de ideias específicas. não vão sair por aí dizendo que eu sou um inimigo do observatório da imprensa, que eu condeno o apresentador e todo o seu pensamento ou algo do gênero. não se trata disso. ele é bom. faz críticas legais. e acompanhou uma boa parte da história da imprensa no país. ele é uma história viva. mas que ele falou um monte de babaquices ingênuas e tolas, isso ele falou. quer dizer, só porque uma pessoa é um gênio, não quer dizer que ele não seja um idiota, e só porque ela é respeitável não quer dizer que ela não possa ser um babaca. assim foi com o apresentador do referido programa. estou falando dele como “apresentador” porque acabei de procurar o nome dele no google e não achei. acho que é porque estou com muita pressa pra escrever logo. achei, sim, o site do programa. acabo de descobrir que o site não vem do programa, mas o contrário. isso é bizarro, porque, pelo que eu vi o sr. apresentador falando, achei que o programa tinha surgido de um pergaminho. minha mãe acabou de acordar e me mandou dormir... mas eu não consigo... você deve estar pensando: esse cara só enrola, não vai direto ao assunto... esse texto é uma afronta ao jornalismo... ele devia lavar a boca antes de falar no sr. apresentador, um ilustre jornalista experto na arte do relato... ele nem sequer se informa sobre o nome do cara, não tem compromisso com a informação... mas quer saber? dane-se. não tenho a menor pretensão de escrever um texto jornalístico. e se eu quiser escrever um, eu escrevo, mas garanto que vai ser bem mais paia.

agora eu mudei de canal e coloquei no oito... de cara, uma pergunta um tanto quanto clássica: “a música de ontem e a música de hoje” (imaginem aqui um falsete bem debochado). o que me lembra que a minha revolta é contra algo muito maior do que a resistência contra a leitura digital: minha revolta é contra a senilidade, contra esse “antigamente era melhor” que a gente vê por aí.

ora, o sr apresentador atacava ferozmente a criação do leitor digital. vamos aos argumentos:



pra começar, ele se perguntava, com toda a frescura que deus deu no mundo: (imagine aqui outro falsete agudo e bem debochado) “será mesmo que o rolar de páginas da (escarro) internet poderá um dia substituir o virar de páginas do livro, a textura das folhas, o cheiro...”. esse cara lê o livro ou faz outra coisa? acho que ele interpretou mal o significado de “bibliofilia”. ele fala como se ler um livro comum fosse sexo, e ler um livro digital fosse masturbação... provavelmente ele não falaria com tanta propriedade sobre uma mulher. note: não estou fazendo um ataque pessoal a ele (que admiro). estou apenas ridicularizando seus argumentos através de uma comparação inusitada e depreciativa. idéias... claro, você também pode estar pensando: isso não passa de literatura barata, de polêmica superficial... mas eu também não tenho a menor intenção de fazer deste mais um texto literário, cheio de delicadezas e nuances... nem misturá-lo ao de gênios como machado de assis, edgar allan poe ou dostoievski... não quero me misturar. esses gênios da raça, há muito tempo atrás, se destacaram por estar a frente do seu tempo... muitos tiveram mesmo que morrer para ser reconhecidos...

aí vem um senhor me falar do cheiro do livro... livros, meu caro, não têm nada a ver com o cheiro. claro que o cheiro de mingau dos livros velhos é agradável, e nos traz informação de que coisa boa está por vir... mas isso é só uma coisa com a qual nos acostumamos. eu também adoro folhear as páginas de um livro... mas isso não me impede de adorar passar o dedo pela barra de rolagem do rato, e deslizá-la suavemente, vendo as folhas brancas (que nunca sujam) escorregarem pela tela... são dois prazeres diferentes e intensos. não se trata, em absoluto, de substituição. esse é o primeiro erro dos regressistas fanáticos. ninguém é obrigado a deixar de ler um livro convencional só porque surgiu uma novidade. quem quiser ler um “analógico”, leia. quem quiser ler um digital, idem. o tempo e as leis de mercado do sistema capitalista tratarão de popularizar aquele que for mais aceito pela maioria. democracia é isso: a maioria manda, mesmo que esteja errada. caso contrário, viveríamos uma aristocracia.

esses caras tratam a novidade como se fosse o fim do mundo, e não um processo natural da evolução. ora, não nos esqueçamos de que, antigamente, os textos eram escritos nas paredes... e que depois evoluíram para uns pergaminhos chatos e compridos, que você ia desenrolando, parecido com papel higiênico... até um dia alguém encadernar e ver que é bem melhor... até o gutenberg inventar a prensa e fazer centenas deles de uma vez... imagino esse senhor... ele tem idade suficiente para ter acompanhado de perto a invenção da tipografia... imagino-o agora resmungando pelas ruas da europa... “isso é uma afronta à história... livros reproduzidos em massa? mas cadê a alma dos calígrafos, que, com esmero, reproduziam palavra por palavra do livro... página por página... o livro vai perder sua identidade... vai se tornar um produto qualquer”. ou ainda, quando inventaram o livro encadernado: “a gente vai perder aquele prazer de desenrolar aquele texto corrediço e sem essa frescura de (escarro) páginas...”. hoje, milhares de anos depois, paradoxalmente, estamos voltando à folha corrediça, com o advento da internet e, especialmente, dos blogues. olhe esse blogue que você está lendo agora: ele não tem páginas... estaríamos voltando aos pergaminhos? estaríamos evoluindo para os pergaminhos modernos? o mundo evolui em forma de espiral... a gente está sempre voltando para o mesmo ponto, mas sempre num patamar superior. o mais importante de tudo é que não se pode deter a evolução. e não há motivo para se amar o passado, porque ele também já foi uma novoiade. estávamos falando justamente sobre isso ontem, na casa do júlio (agora já são meio dia do dia seguinte ao do início do texto. fui forçado a dormir às três da manhã, não sem ler um conto do poe antes, em livro analógico, lógico. acabo de terminar todas as minhas tarefas domésticas e voltei a escrever): paulo apedeuta apareceu por lá, sugerindo que a gente colocasse uns telões em praça pública e exibisse rocks antigos, para a junventude conhecer. “paulinho, quem é, nessa cidade, abaixo de 15 anos, que conhece beatles? niguém. eu juro de pés juntos! quer valer aposta? lá no cruzeiro...” dizia ele, defendendo a idéia. papai comprou a idéia e de imediato criou um nome: “já tenho até o nome do projeto: velhas novidades...”. agora reparemos: um dia, os beatles foram apenas quatro posers que faziam uma música barulhenta e inadequada, falando de coisas imorais como liberdade sexual e amor livre... e umas letras ridículas, como “gire e grite...”. eram só uma modinha passageira... apenas penteados... hoje, meio século depois, é um pecado não conhecer beatles. beatles é a base de toda a música moderna. os compositores do clássico “twist and shout”. o tropicalismo vai ser sempre um sgt. peppers pós baiano (valei-me, lobão!). mas os mesmos que ouvem e veneram beatles dizem que a música não é mais como antigamente, que hoje em dia não há mas aquela criatividade, a mesma verve... “bons tempos...”, dizem eles. seria melhor, então, que tivéssemos estagnado na música tribal... ou que nem tivéssemos inventado a música, pois onde já se viu uma pessoa interromper suas tarefas para com a tribo e a sobrevivência para se dedicar a uma coisa tão lúdica... melhor seria, talvez, que nem tivéssemos perdido tempo com a escrita. os tempos mudam, o tempo todo...

mas voltando ao livro digital, que ainda não desceu goela abaixo. os regressistas defendem, ainda, que o jeito mais seguro de preservar as informações é o livro analógico. mas o livro analógico pode rasgar, molhar ou pegar fogo. em todos esses casos, já era... já o livro digital... também! ele pode quebrar, dar pau, ou explodir... mas nesse caso você não perde suas raridades. porque o livro digital não passa de códigos, códigos binários, amontoados de bits, que podem se reconstituir em qualquer lugar, da mesma forma, com a mesma cor, os mesmos pixels... tudo igual. para começar, existe uma coisa chamada cartão de memória. essa coisa já é bem comum no nosso cotidiano. Nós a usamos nas máquinas digitais, celulares e afins. o livro digital também tem isso. isso quer dizer que, mesmo que você quebre seu leitor, você vai ter as informações guardadas no cartão. e se acontecer alguma desgraça com o seu cartão, se ele sumir ou você deixar ele cair no vaso, você ainda pode baixar ele outra vez ou acessá-lo de outro lugar. o livro digital ainda não permite o compartilhamento de arquivos, mas tenho fé na pirataria e nos hackers, e no neoliberalismo, que, através da competição, vai atrair novas marcas e melhoras no produto. isso quer dizer que não vão mais haver livros raros. vão haver becapes... eu passei por uma experiência uma vez: eu tinha cerca de 10 gigabaites de música no meu computador. até que o computador deu um daqueles tiltes homéricos. apagou geral. não sei se tinha algo haver com os 532 virus que o parasitavam. não teve outra: nigel chan, meu irmão, mago dos computadores, teve que formatá-lo. o que quer dizer que eu perdi minhas estimadas músicas. por sorte, dotado de um agudo espírito socialista, eu sempre fiz questão de compartilhar todos os meus arquivos, e espalhá-los pelo mundo. muita gente tem mania de não passar seus arquivos para ninguém, como se o pendraive fosse roubar o espírito das músicas. mas eu não tenho esse ranço da era dos discos físicos. logo depois de formatado o computador, eu só precisei descobrir com quais dos meus amigos estariam os meus valiosos álbuns. assim, em menos de um mês, eu tinha todos eles de volta, inclusive algumas “raridades”, como o primeiro disco de raul seixas, “raulzito e os panteras”, em mp3, o disco da banda utopia, pré-mamonas assassinas, e o primeiro EP do evanescence, que hoje já não é tão raro, mas continua excelente. as músicas continuavam as mesmas, até os arranhões de alguns cds que eu copiei pelo windows media player, as imagens das capas em jpeg, etc. hoje, eu tenho 34 gigas. mas, que eu saiba, ninguém nunca recuperou alguns livros raros que estavam na biblioteca de alexandria...

vamos deixar de ser bestas, gente. o mais importante, no fundo, são as ideias, as palavras, a conexão entre elas, a maestria com que elas são pintadas sobre a tela, não importando se o suporte é uma tela digital, uma parede, um pergaminho ou um livro de capa dura em papel bíblia foleado a ouro... pois, seja lá onde for, dom casmurro continuará sendo um clássico, e uma obra genial, capitu continuará com seus olhos oblíquos e dissimulados, a dúvida e polêmica do “traiu ou não traiu” continuará por aí, seja numa conferência na unb ou num fórum do orkut. e é aí que reparamos: por mais mudanças que aconteçam, e são naturais, certas coisas não mudam...

claro que ainda tem um monte de coisas travadas na garganta, e eu nem cheguei a falar dobre a economia de papel, mas eu já tou cansado desse texto, e ainda tenho que corrigir esse troço, e tenho que terminar a capa do DVD “radicais summer hits”. depois vou ler um pouco, em livro analógico, porque eu acho um saco ler em livro digital... RA RA RA RA RA RA!

*d.b não sabe escrever textos jornalísticos, e por isso inventa desculpas esfarrapadas pra se justificar. este texto deu um trabalho gigante pra corrigir. isso porque o word é um saco, e coloca, automaticamente, letras maiúsculas nas palavras. mas este texto segue o novo padrão gramatical vanguardista e libertário, e como o leitor deve ter notado, esse texto não tem letras maiúsculas. então, a correção não era para colocar maiúsculas e sim minúsculas. que fique registrado: é a primeira correção desse tipo na história. o novo padrão gramátical foi criado por d.b como três objetivos: romper com as antigas estruturas falidas da gramática, servir como justificativa de d.b. para sua preguiça de apertar shift toda hora e pirraçar o co-editor daniel, que fica agoniado de ver o texto sem uma letra maiúscula sequer (assim como o próprio d.b., que no entanto resiste à própria ojeriza só por marra). contando com d.b., o movimento pró-minúsculas já tem uma pessoa.

d.b., o próprio, que fala de si mesmo na terceira pessoa, como se ninguém soubesse que ele tá falando de si mesmo...

EPÍLOGO


("Livros não estão mortos - Eles só estão se tornando digitais. Cinco séculos após Gutenberg, Jeff Bezos, da Amazon, está apostando que o futuro da leitura é apenas um clique")

O TEXTO DE ALBERTO DINES

A revolução dos leitores digitais

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Por que razão os jornais e revistas entregam-se com tanto prazer aos vaticínios sobre o seu fim? É masoquismo? Vocação suicida? Ou é mais um modismo que pretendem impingir num mundo comandado pela velocidade e obsolescência?

O mais recente gadget, brinquedinho eletrônico, é o leitor digital de livros anunciado há dias nos Estados Unidos e apresentado em grande estilo na Feira de Livros de Frankfurt. O que chama a atenção, pelo menos deste Observatório, é o facciosismo do nosso noticiário: ninguém discute as deficiências naturais e inevitáveis da nova tecnologia. Nossa mídia pintou a traquizonga - como a chamou João Ubaldo - como se fosse definitiva. Não é verdade.

O aparelho ainda é tosco, dizem os especialistas, a leitura ao sol é complicada pelo reflexo mas ninguém lembra que a tecnologia usada é a mesma dos celulares que, como sabemos, no Brasil deixa muito, mas muito a desejar. Mas qual o veículo que tem a coragem de questionar a qualidade da nossa telefonia móvel?

E a portabilidade? Este leitor digital de livros oferece a mesma portabilidade de um pocket-book? O prazer de folhear poderá ser substituído pelo prazer de rolar continuamente algumas linhas no monitor?

É possível que as deficiências dos protótipos sejam corrigidas, principalmente pelas marcas concorrentes mas uma coisa é certa e definitiva: quando se trata de vender novidades e modismos a mídia não questiona, não duvida. O que funciona é o instituto do oba-oba. Este Observatório acredita que os cientistas e inventores têm compromisso com suas certezas mas o papel do jornal é duvidar. Sempre.


Fonte: Observatório da Imprensa, Programa n.º 525, 20 de outubro de 2009. Disponível em http://observatoriodaimprensa.com.br/oinatv.asp

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